sábado, 24 de agosto de 2013

O morto que canta

"Há uma morte que vem de fora e uma morte que cresce por dentro. Cada uma delas produz uma dor diferente. Nas representações artísticas, como na tela terrível de Brueghel, a primeira que é representada - como cavaleiro de alfanje na mão. Ela chega sem ser convidada, como intrusa, nas mãos do assassino, no acidente que mata como um raio, na doença que entra e vai tomando conta do corpo, por mais que se tente mandá-la embora... Aparece como uma interrupção. No seu livro 'Lições de abismo', Gustavo Corção lamentava-se de que a vida não fosse como uma sonata de Mozart: curta, não mais que 20 minutos. E, no entanto, nesse curto tempo, tudo que há para ser dito é dito. Os últimos acordes nada interrompem. Apenas completam. O que se segue, então, é o silêncio da saudade, abençoadamente feliz, pois é o silêncio que vem depois da experiência da beleza. Que pena que a vida não seja assim... Pois o que acontece é que a sonata é abruptamente interrompida pela morte intrusa, um golpe de desarmonia bruta desferido por uma potência sinistra, surda à melodia que se queria cantar. E a sonata fica ali, quebrada ao meio, fragmento, caco, incompleta...

 A morte do suicida é diferente. Pois ela não é coisa que venha de força, mas gesto que nasce de dentro. O seu cadáver é o seu último acorde, término de uma melodia que vinha sendo preparada no silêncio do seu ser. A primeira morte não foi um gesto; foi um acontecimento de dor. Mas no corpo do suicida encontra-se uma melodia para ser ouvida. Ele deseja ser ouvido. Para ele valem as palavras de César Vallejo: "su cadáver estava lleno de mundo". O seu silêncio é um pedido para que ouçamos uma história de cujo acorde necessário e final é aquele mesmo, um corpo sem vida.(...)"

O Quarto do Mistério
, Rubem Alves

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