quinta-feira, 29 de outubro de 2015

fazendo as malas

seu beijo tem gosto de esperança
mas você tem cheiro de tristeza

eu também

eu amei o seu e você
gostou do meu
e eu não sei fazer bastar

"como uma pessoa que não ama a vida poderia amar a mim?"
eu penso
e ao mesmo tempo uma parte minha responde
"você sabe que isso é possível
você sabe que fez isso a vida inteira."

vai passar, não é?
pra mim e pra você,
vai passar
sempre passa
mesmo com as marcas

mas enquanto não passa
enquanto eu ensaio fazer as malas para ir embora
você seguraria minha mão durante a noite
só mais um pouco?

quarta-feira, 28 de outubro de 2015

amor é acudir a dor do outro

quando se tem depressão
mais importante que ouvir "eu te amo"
talvez seja "você não vai passar por isso sozinha"

segunda-feira, 26 de outubro de 2015

sobre o enem ou sobre o amor

(a polissemia é serventia da casa)

sou boa em achar respostas
quando elas podem ser encontradas
no contexto
sou boa em resolver alguns enigmas solúveis
mas não faço milagre
intuo algo, cogito outro pouco
não sou capaz de desvelar o que não quer ser desvelado

quinta-feira, 22 de outubro de 2015

trigger queen

- Vou dar o nome de uma música do meu EP de Rainha dos Gatilho.
- Trigger queen.
- Gostei .

*

- As pessoas não sabem - ela riu, rangendo os dentes - Elas não tem a menor ideia. A menor, a mais pálida ideia, do tamanho dessa dor. Não porque a minha dor seja  a maior do mundo. Mas por que, por alguma razão, eu sempre sinto que as pessoas tem uma espécie bizarra de fé em mim. Eu tentei me matar mais de 4 vezes na vida, e ainda assim parece que as pessoas acham que eu só tenho dor em crise por razões pontuais. Sei lá.
- Você queria ser reconhecida como a epítome da depressão?
- Não, que inferno. Eu só queria sumir. Não me matar. Sumir, só.

*

se eu  tivesse cumprido o que um quadrinista me disse certa vez como piada
não teria tido graça nenhuma
ele provavelmente se sentiria horrível
mas meus amigos não o culpariam
agora ele quis encerrar a página
e eu queria dizer
"obrigada por ter verbalizado tão bem várias de minhas dores
obrigado por ter exposto tantas das suas
e minha retribuição é na forma
de não ter cumprido o que você me sugeriu
sem saber quão literal eu gostaria de ser
que bom saber que você melhorou
eu também
de várias formas"
mas apesar de rainha dos gatilho
vou deixá-lo não lembrar disso

eu lembro.

segunda-feira, 19 de outubro de 2015

Seca II

- Talvez em certos níveis o amor tenha sido sempre  algo que eu achei  que precisava conquistar - Samantha disse, a mecha de cabelo vermelho caindo pelo rosto enquanto ela tomava um gole de café. - Talvez o amor sempre tenha me parecido algo muito árduo de se alcançar, e por isso me parecia natural, então, estar em relações exigentes e desgastantes.

- E você ainda acha isso? Que o amor é difícil de alcançar? - respondeu sua amiga, Aletheia. Olhos escuros, perspicazes e profundos. O sorriso de quem poderia rasgar a garganta de um homem. Mas nunca havia feito isso. "Infelizmente", diria Aletheia.

- Essa é a tragédia da coisa, né? Eu acho, sim, eu ainda acho que o amor é difícil de alcançar, mas preciso desconstruir isso. Com urgência. Não que o amor seja fácil, mas não pode ser algo pelo qual você só sangra e dá e luta e se esforça pra cada vez parecer se pôr mais fora de alcance ainda.

- Sabe uma coisa que eu acho engraçada? - Aletheia disse, acendendo um cigarro - A expressão "Dar murro em ponta de faca". É uma metáfora tão boa, porque é algo tão burro, você usar toda a força de um soco pra dar murro na ponta afiada de uma faca. Dói, sangra, e a genialidade dessa metáfora é que não é uma metáfora pra um sacrifício bem recompensado. Não é, sei lá, "Deus ajuda quem cedo madruga". É uma metáfora pra uma dor vã. Um esforço vão. Você tá lá, sabe, dando murro na ponta da porra de uma faca. Não tem como sair algo de bom nisso. Só mãos cortadas.

- Com mãos cortadas talvez fique mais difícil abraçar. O que talvez não fosse nada mal - disse Samantha, frustrada.

- Você sabe que ainda dá pra abraçar, mesmo depois de termos nossas mãos cortadas. E que talvez isso seja uma coisa boa, no final. Se aprendermos a abraçar as pessoas certas.

- E você acha que dá pra aprender?

- Acho que você errou de novo - disse Aletheia, alegremente. Samantha revirou os olhos - Não, sério. Acho que podemos aprender, sim. Temos de aprender. Essa socialização feminina horrorosa faz a gente achar que amor é se anular. Que tem algo de bonito e altruísta em desgraçar a própria cabeça tentando fazer um amor funcionar a qualquer preço. Mas não dá, não compensa, não é o que merecemos. A gente merece sim abraçar alguém com quem nossas mãos não pareçam mais cortadas por repetidos murros em ponta de faca. A gente merece alguém com quem nossos cortes possam ir sarando. E às vezes eles só saram direitinho quando encaramos eles sozinhas. - Aletheia concluiu, pensativa.

- Você é uma das pessoas perto de quem meus cortes vão curando, vão sarando, vão reduzindo de tamanho. Talvez você seja até como uma pomada que reduza os quelóides das cicatrizes profundas que foram cicatrizadas de um jeito errado. Eu te amo tanto que eu poderia escrever um livro sobre isso -  Samantha sorriu.
- Escreva o livro. Vai ser ótimo. Tenho ascendente em leão, você sabe, vou cobrar. 

terça-feira, 13 de outubro de 2015

intimidade

seu beijo tem gosto de esperança
um carinho tão pacífico
pacifismo anti-estatal
não-violência anti-patriarcal

ele tem a resistência das manhãs nubladas
de quem sobrevive a contragosto

vi nele o que eu fui
vi nele parte de quem sou
vi nele parte do que jamais fui
vi nele o que não sou

imersos nas distâncias
e na proximidade tácita
cada vez mais lânguidos
envolvendo-se nos braços um do outro
intimidade assusta
intimidade assusta porque rima
com vulnerabilidade

eu aceito correr o risco
e eu aceito pagar o preço
de estar
de estar presente verdadeiramente
enquanto for possível estar
para o bem e não para o mal
para a alegria e não para a frustração
para a apoia mútua e não para a destruição
do outro

eu o aceito
como se aceita o insondável
que impenetrável não seja
se eu puder deslizar para dentro.

terça-feira, 6 de outubro de 2015

tive tanto amor um dia

"Não se preocupe, não vou tomar nenhuma medida drástica, a não ser continuar, tem coisa mais auto destrutiva do que insistir sem fé nenhuma? Ah, passa devagar a tua mão na minha cabeça, toca meu coração com teus dedos frios, eu tive tanto amor um dia."
- Caio Fernando Abreu