quarta-feira, 29 de junho de 2016

ligando os pontos

não há como ser uma conexão real entre duas pessoas
e só uma delas ter sentido
conectar-se a algo
pressupõe, entre almas,
uma dose mínima
de afeto mútuo
ainda que tácito
apaixonar-se pesa demais
quando feito por só um lado
só um lado não forma um laço
só nó

pode até ser amor
não será, contudo, conexão
se é unilateral

a entrega total
exige devoção
e um tipo de cuidado
que só funciona
se oferecido de bom grado
do contrário
é auto-engano
e hemorragia verborrágica vã

quinta-feira, 23 de junho de 2016

catando os cacos

para Beatriz, que me inspira e a quem me conecto
para ela que carrega o mesmo nome da minha mãe 
mas diferentemente dela, tem conseguido com maestria permanecer viva

o suicídio é minha cicatriz indelével
são hesitation wounds 
profundamente gravados na minha pele 
e na minha carne
ainda que invisíveis 

e pessoas que não se sentem assim
simplesmente não entendem 
curioso eu já ter ouvido que parecia alegre
que não parecia depressiva 

não é mentira
mas também não é muito verdade 

eu tenho olhos cansados
e um coração cheio de amor 
eu tenho esperanças gastas 
e outras tantas renovadas 

eu carrego minha cicatrizes 
eu sei muito bem o quanto sou pesada 

eu não devo minha vida a ninguém 
ela pertence a mim
apossando-me dela, hoje quero viver 
é pesado, sim, existir
eu o sei bem demais 
eu passei tempo demais tolerando mal a vida
na ânsia de poder sumir um dia 

e eu sumirei um dia 
não hoje, porém 
hoje recolho a bagunça pelo quarto 
e as mágoas peso tristeza melancolia angústia desespero saudade
traumas 
saudade de uma casa que nunca foi minha 
hoje escolho recolher todos esses cacos 
e criar algo pra fora
que expresse a ambivalência de dentro 
sem contudo eu ser uma poetisa suicida

estou tentando ser uma poetisa viva.

sábado, 4 de junho de 2016

estado de natureza

um corpo que cai
ossos que quebram
pulmões cheios d'água
olhos também
gastrite nervosa
dentes rangendo
cabelos caindo
fôlego curto

dormir pra esquecer
dormir pra tentar esquecer
dormir pra ensaiar morrer

boca seca
vícios clandestinos
medo de se importar
medo de ser tocado
medo de amar

um emprego sem graça
uma graduação frustrada
falta de tempo
interações automáticas
saúde em segundo plano
mas culpa em primeiro
orar sem ter fé
descrer por ter ódio
livros não lidos
filmes mal assistidos

pedaços por toda parte
uma tonelada de saudades
buscas incessantes
e o eterno retorno ao vazio
velho conhecido
de quando o fado de viver
se torna abissalmente excessivo.