sábado, 26 de novembro de 2016

expurgo

"Inventamos novos caminhos para não ter que passar nossas vidas no escuro."
Andrew Solomon - O demônio do meio dia - Uma anatomia da depressão

desconheço panacéias
desconheço pedra filosofal
exceto pelo amor

mercúrio e enxofre
sangue e lágrimas
saliva, carne, alma
asfalto, fumaça
neblina
ausências

desconheço panacéias
e as vejo com desconfiança
subjetividade tão distintas
o que poderia servir para todas?

contudo, creio nos expurgos
nos chás que promovem suadouros capazes
de extirpar doenças
sabores por vezes amargos
que trazem excelentes resultados

creio nos expurgos
e nas transmutações
panacéia não há
mas há alquimia
diária
em misturar tanto caos
com o caos alheio
e em meio a isso
criar a ordem
uma ordem orgânica
não a ordem higienizada artificial do capital
a ordem da natureza

essa ordem se manifesta
quando se equilibram os pólos
quando a separação fragmentada
dá lugar a integração empática
e sensível

bruxaria não é só sobre rituais complexos secretos
bruxaria é sobre entrar profundamente em contato consigo mesma
e, ao acolher a sombra
integrá-la
amar mais
e melhor
conhecer a si
e permitir ser conhecida
ser senhora dos próprios caminhos
em vez de caminhante nos dos outros
me bastarão os meus

sombra e luz fazem teatro e mágica
mistérios iniciáticos ou sexualidade
só ou acompanhada
temer a escuridão é a ilusão dispensável
panacéias não existem
curas múltiplas sim
amar e ser amada
ser cuidada e cuidar
arrancar gazes de ferimentos antigos e deixar ir
água doce pra beber e lavar
Mundo inteiro em si mesmo
para reintegrarmos a nós mesmas
sem aniquilação de si
renascer em potência infinita
e deixar sair e morrer
para viver cada vez mais.

insurgente II

meu amor é uma força da natureza
eu o sinto nos meus ossos 
eu o sinto em meus lábios 
eu o sinto em mi sangre 
eu o sinto em meu útero 
eu o sinto em minha luta 

nas lutas maiores e menores
nas lutas diárias 
nas macro, anti-sistêmicas
e nas batalhas interiores 
para iniciar e finalizar cada dia viva
e permanecer sempre fiel a mim 

meu amor é rebeldia
que escorre pelo verbo 
é presença indomável 
e transgressão dos medos 
marcados em minha carne 
no meu invólucro de corpo feminino 

meu amor é potência criativa 
para um poema ou para um novo amanhã 
"nossa profissão é a esperança"

meu amor é ofício que escolhi 
seguir pulsando, criando, quebrando
jaulas 
demolindo cárceres 

e cuidar do outro 
e cuidar de mim
e aceitar e amar o cuidado
e deixar ser na medida em que é 
e viver na medida que sou 
e amar com o fogo incandescente 
de quem segura uma mão com a mesma delicadeza
que acende um molotov 
e arde a cidade
e ardemos nós
de formas melhores.

quarta-feira, 23 de novembro de 2016

Pausa para paz

Amor é refúgio.
Pra passar stress a gente já tem o capitalismo neoliberal e seus desdobramentos.
Amor é pra você pensar que vale a pena estar aqui apesar dos pesos só pra poder olhar aquele rosto específico que faz sua alma brilhar.

Amor não deve ser martírio. Amor é pra ser copo d'água 16h no auge da seca de Brasília.

Amor é concretização do sonho que queremos, e não reprodução das lógicas que precisamos destruir.

Amor é futuro almejado e presente construído. Dia a dia e para cima. Transbordar de entrega.

Amor é potência pulsando de vida que ajuda a criar novas vidas em uma.

Amor é caminho, labirinto, sinuosidade. Amor é intenção de cura. É busca por completude.

Ninguém nos completa.
Mas o amor nos completa.
Preenche espaços e ausências, apazigua feridas. Amor é permanência e despedida. Amor é plenitude e maximização do ser. Amor é rio que nutre a terra que o cerca. Amor é terra em que florescem lírios, caliandras, flor de jagube, girassóis.

Amor é miríade de metáforas para expressar o inefável e registrar: que senti. E sinto. Sentimos.

sexta-feira, 11 de novembro de 2016

metamorfose

para Edmar

rasgo o silêncio
e o torno fecundo
sopro água, cuspo fogo
lambo feridas antigas
chega de esfregar sal
eu quero sanar

(que te importam minhas chagas?
meus vícios de tristeza
"do que a gente sabe da cidade dos outros?")

quando morreres, ninguém te devolverá
o amor que não deste
podes enterrá-lo
mas jamais frutifica
o que foi plantado errado

de ervas daninhas estou farta
(e do lirismo que não é libertação)
quero alecrim e alegria
manjericão e paz
amor e repouso
descansar nos braços do mar.

quinta-feira, 10 de novembro de 2016

Para Ariadne

essa dor de ser mulher
eu a carrego
e sinto
no meu útero
na minha vulva
nos meus ossos
nos meus olhos
na minha carne
na minha alma



essa dor de sofrer só
de confiar neles sempre com receio
de ter sua subjetividade
construída tanto sobre
o medo

essa dor de ser mulher
e tratada como inacabada
pouco confiável
emocional demais
sempre policiada
em seu existir
essa dor de resistir diariamente
toda mulher a conhece
até mesmo as de extrema direita
apressam o passo ao ver um homem no caminho
na rua deserta
onde habita o desespero

essa dor de transbordar
um sangue desprezado
e seguimos buscando
"criar uma nova vida"
no apoio mútuo
na luta
no silêncio
nos chás e ervas
na dança
na poesia
na angústia
criamos como artistas mulheres
(o "artista" não especificado é homem)
atiramos em várias direções na ânsia
da mera sobrevivência

e então algo rompe o muro
e então a realidade bate à nossa porta
impassível
para rasgar os véus da dor
que tentamos esquecer

nenhuma mulher precisará
olhar longe para ver a violência
está na nossa pele
no nosso sexo
está em toda forma de destruição
que a supremacia masculina
imprime a nossos corpos

e resistimos
e melhor o fazemos quando em união
algumas de nós, porém
se quebram
e se vão
partem antes da hora
tornam a dor seu próprio fim
e esvaem suas vidas
pelas suas próprias mãos

poderia ter sido eu.