segunda-feira, 31 de março de 2014

saturno

saudade dos ciclos longos
embora os lunares sejam tão curtos
saudade de tudo
inclusive de esperar

segunda-feira, 24 de março de 2014

calma

às vezes eu nem entendo, não
às vezes nem tenho pretensão de fazê-lo
noutras insisto até o ponto de ruptura
boa vontade demais e aceitação de menos
mas tenho aprendido,
gra-du-al-men-te
a calma é princípio do amor.

domingo, 23 de março de 2014

precoce saudade

eu o vejo em coisas tão diversas
quanto um ensinamento budista
ou pipoca
no meu gato
no Santo Daime
nos meus anéis
na ausência do lado da cama

em tudo que reluz
em tudo que amo
e por vezes
nos nós que apertam
combato os nós
quero que se desatem
quero laços e não nós
quero caminhos de mãos dadas
não estradas arrastadas
quero olhar teus olhos na altura dos meus
não colocando-me abaixo
mas de frente
e ao lado
durante a transitoriedade
exata
que cabe no possível .

ojos negros

existem tantos
jeitos de
ser
existem  tantas formas
de
ser

esperança resguardo
de que harmonizemos
nossos seres
e sejamos
em paz
na simplicidade
elevada
da gratidão
do perdão
compreensão
compaixão

porque o tempo cura
mas o amor cura mais

(a perseverança é uma qualidade
tão nobre quanto a aceitação desapegada
firmo-me no que significa ser fiel ao que sinto
hoje
e sigo buscando
teus olhos de novo

e se puder eu sigo buscando
teus olhos -
tão bonitos
tão escuros
tão argutos
poço profundo de escorpião
- a vida inteira
até o dia
em que eles encontrem os meus de novo
e repetir isso por todas as noites e manhãs
até o fim desta vida
e todas as que sucederão)

sexta-feira, 14 de março de 2014

Crônica do beco

À Luiza Coimbra e Carolina Knihs

Arde. Arde assim de um jeito morno, agridoce. Noutras arde pungente, rasga mesmo. Sim: corrói. Arde e ela atira para várias direções buscando que não arda. Ou que arda morno, suave. Seus êxitos são temperamentais.

Borderline não senhor, que havia método em seus excessos. Excessos e arroubos que ela já aprendera bem mais a controlar.

Depressiva? Que é depressão? Disfunção neuroquímica ou mal-estar da alma? Qual seria afinal o limiar da dor compreendida e a socialmente inaceitável? Critério arbitraríssimo é o de categorizar depressão como falta de funcionalidade. Depressivos notórios produziram coisas. Produziram inclusive seus próprios fins.

Já não se queixa; apreende. O que arde às vezes coça. Mas às vezes nem incomoda, embora ainda esteja lá. Contemplando com olhos diretos e sérios. Onisciente.

Respira fundo porque consegue fazê-lo. Porque pode. Respira fundo ainda que o ar em seus pulmões às vezes mais arda que alivie. Mas respira, sôfrega. Comovida. Aceitando.

Respira fundo na esperança que desfaça o nó no estômago; porém nem sempre. Ela lembra contudo de quando se perdeu uma vez num beco escuro tão comprido que achou que não houvesse saída. A noite fechando o cerco e os receios todos sibilando em seus ouvidos. Desespero. Toca as paredes do beco, passa os dedos procurando ranhuras no concreto. Toca a princípio com cautela, logo enfia os dedos na parede suja, arranha. Lasca as unhas. Não há saída pelos lados, não. Nada de tergiversar, embora tivesse medo. Respirou fundo como quem implora ao ar que lhe nutra com a vida. Fecha os olhos. Segue. Segue receosa, olha pra trás a cada dois passos. O beco, ah, o beco. Haveria será saída do beco? Ela não sabe.

Sabe é que ficar parada não é uma opção. Entregar-se ao desespero tampouco; isso não a protegeria dos perigos de estar sozinha à noite perdida num beco. Para ver a luz, precisava sair dali. Seguiu. Com medo mas convicção. Resoluta. Caminhou. Caminhou bastante tempo, que beco era aquele, meu Deus? Achou a saída, por fim. Aliviou-se. Ainda estava noite escura. Mas a noite não era eterna.

"Que importa a paisagem, a Glória, a baía
a linha do horizonte?
...o que eu vejo é o beco."¹

Ela via o beco. Todavia via também a paisagem, a Glória, a baía, a linha do horizonte. Via várias coisas e certamente ainda veria muito mais. Se insistisse o bastante.

Todos os becos são transponíveis.



-
O poema indicado por * é de Manuel Bandeira. Serviu de inspiração  também o texto "Além do ponto", de Caio Fernando Abreu.

segunda-feira, 10 de março de 2014

dolor

vampiros só entram nas casas
se convidados
pessoas só estilhaçam corações
nos quais entraram
estilhaçam por perfídia
ou ignorância
ou ambos

um dia fiquei tão amargurada
que jurei a mim mesma não mais escrever aqui poemas
sobre tudo aquilo


tenho mantido isso
esse não é um poema de amor
é um poema sobre como confiança
às vezes envenena
e te rasga por dentro
sobre como perdoar
é um ato deliberado e doloroso
de sufocar seu ego
e sua necessidade de auto-proteção
em prol de algo maior

algo maior que eu
mas o caminho para tal
é tão profundamente doloroso
que espero somente ter tomado as decisões certas
para que um dia
toda essa dor cesse e faça sentido
faça sentido
para além de tanto
tanto
tanto
ter doído.