sexta-feira, 2 de dezembro de 2016

if only tonight we could sleep in a bed made of flowers

eu queria escrever algo bonito e edificante sobre a sobrevivência
a despeito das feridas
do caos
da dor
da angústia
da saudade
da tristeza
da apatia
de tudo

e não serei capaz
não nesta tarde

a única coisa parecida com esperança
que posso escrever hoje
é que enfiei minha cabeça no travesseiro
e ele tinha o cheiro do meu amor
e em meio a escuridão interna
que teima em persistir
eu lembrei que ainda posso ser acolhida
ainda que despedaçada.

sábado, 26 de novembro de 2016

expurgo

"Inventamos novos caminhos para não ter que passar nossas vidas no escuro."
Andrew Solomon - O demônio do meio dia - Uma anatomia da depressão

desconheço panacéias
desconheço pedra filosofal
exceto pelo amor

mercúrio e enxofre
sangue e lágrimas
saliva, carne, alma
asfalto, fumaça
neblina
ausências

desconheço panacéias
e as vejo com desconfiança
subjetividade tão distintas
o que poderia servir para todas?

contudo, creio nos expurgos
nos chás que promovem suadouros capazes
de extirpar doenças
sabores por vezes amargos
que trazem excelentes resultados

creio nos expurgos
e nas transmutações
panacéia não há
mas há alquimia
diária
em misturar tanto caos
com o caos alheio
e em meio a isso
criar a ordem
uma ordem orgânica
não a ordem higienizada artificial do capital
a ordem da natureza

essa ordem se manifesta
quando se equilibram os pólos
quando a separação fragmentada
dá lugar a integração empática
e sensível

bruxaria não é só sobre rituais complexos secretos
bruxaria é sobre entrar profundamente em contato consigo mesma
e, ao acolher a sombra
integrá-la
amar mais
e melhor
conhecer a si
e permitir ser conhecida
ser senhora dos próprios caminhos
em vez de caminhante nos dos outros
me bastarão os meus

sombra e luz fazem teatro e mágica
mistérios iniciáticos ou sexualidade
só ou acompanhada
temer a escuridão é a ilusão dispensável
panacéias não existem
curas múltiplas sim
amar e ser amada
ser cuidada e cuidar
arrancar gazes de ferimentos antigos e deixar ir
água doce pra beber e lavar
Mundo inteiro em si mesmo
para reintegrarmos a nós mesmas
sem aniquilação de si
renascer em potência infinita
e deixar sair e morrer
para viver cada vez mais.

insurgente II

meu amor é uma força da natureza
eu o sinto nos meus ossos 
eu o sinto em meus lábios 
eu o sinto em mi sangre 
eu o sinto em meu útero 
eu o sinto em minha luta 

nas lutas maiores e menores
nas lutas diárias 
nas macro, anti-sistêmicas
e nas batalhas interiores 
para iniciar e finalizar cada dia viva
e permanecer sempre fiel a mim 

meu amor é rebeldia
que escorre pelo verbo 
é presença indomável 
e transgressão dos medos 
marcados em minha carne 
no meu invólucro de corpo feminino 

meu amor é potência criativa 
para um poema ou para um novo amanhã 
"nossa profissão é a esperança"

meu amor é ofício que escolhi 
seguir pulsando, criando, quebrando
jaulas 
demolindo cárceres 

e cuidar do outro 
e cuidar de mim
e aceitar e amar o cuidado
e deixar ser na medida em que é 
e viver na medida que sou 
e amar com o fogo incandescente 
de quem segura uma mão com a mesma delicadeza
que acende um molotov 
e arde a cidade
e ardemos nós
de formas melhores.

quarta-feira, 23 de novembro de 2016

Pausa para paz

Amor é refúgio.
Pra passar stress a gente já tem o capitalismo neoliberal e seus desdobramentos.
Amor é pra você pensar que vale a pena estar aqui apesar dos pesos só pra poder olhar aquele rosto específico que faz sua alma brilhar.

Amor não deve ser martírio. Amor é pra ser copo d'água 16h no auge da seca de Brasília.

Amor é concretização do sonho que queremos, e não reprodução das lógicas que precisamos destruir.

Amor é futuro almejado e presente construído. Dia a dia e para cima. Transbordar de entrega.

Amor é potência pulsando de vida que ajuda a criar novas vidas em uma.

Amor é caminho, labirinto, sinuosidade. Amor é intenção de cura. É busca por completude.

Ninguém nos completa.
Mas o amor nos completa.
Preenche espaços e ausências, apazigua feridas. Amor é permanência e despedida. Amor é plenitude e maximização do ser. Amor é rio que nutre a terra que o cerca. Amor é terra em que florescem lírios, caliandras, flor de jagube, girassóis.

Amor é miríade de metáforas para expressar o inefável e registrar: que senti. E sinto. Sentimos.

sexta-feira, 11 de novembro de 2016

metamorfose

para Edmar

rasgo o silêncio
e o torno fecundo
sopro água, cuspo fogo
lambo feridas antigas
chega de esfregar sal
eu quero sanar

(que te importam minhas chagas?
meus vícios de tristeza
"do que a gente sabe da cidade dos outros?")

quando morreres, ninguém te devolverá
o amor que não deste
podes enterrá-lo
mas jamais frutifica
o que foi plantado errado

de ervas daninhas estou farta
(e do lirismo que não é libertação)
quero alecrim e alegria
manjericão e paz
amor e repouso
descansar nos braços do mar.

quinta-feira, 10 de novembro de 2016

Para Ariadne

essa dor de ser mulher
eu a carrego
e sinto
no meu útero
na minha vulva
nos meus ossos
nos meus olhos
na minha carne
na minha alma



essa dor de sofrer só
de confiar neles sempre com receio
de ter sua subjetividade
construída tanto sobre
o medo

essa dor de ser mulher
e tratada como inacabada
pouco confiável
emocional demais
sempre policiada
em seu existir
essa dor de resistir diariamente
toda mulher a conhece
até mesmo as de extrema direita
apressam o passo ao ver um homem no caminho
na rua deserta
onde habita o desespero

essa dor de transbordar
um sangue desprezado
e seguimos buscando
"criar uma nova vida"
no apoio mútuo
na luta
no silêncio
nos chás e ervas
na dança
na poesia
na angústia
criamos como artistas mulheres
(o "artista" não especificado é homem)
atiramos em várias direções na ânsia
da mera sobrevivência

e então algo rompe o muro
e então a realidade bate à nossa porta
impassível
para rasgar os véus da dor
que tentamos esquecer

nenhuma mulher precisará
olhar longe para ver a violência
está na nossa pele
no nosso sexo
está em toda forma de destruição
que a supremacia masculina
imprime a nossos corpos

e resistimos
e melhor o fazemos quando em união
algumas de nós, porém
se quebram
e se vão
partem antes da hora
tornam a dor seu próprio fim
e esvaem suas vidas
pelas suas próprias mãos

poderia ter sido eu.

domingo, 16 de outubro de 2016

"Eu lembro que de vez em quando, eu era obrigado a fumar na janela daí
Sua janela tem um parapeito e pra não deixar a fumaça entrar na casa, eu ficava sentado no parapeito do sexto andar né
Jogando a fumaça pra fora
De vez em quando eu pensava que se eu caísse dali, tava tudo bem sabe, não tinha tanto problema, eu estava tão feliz nó
Mas eu não caía né, eu não me jogava
Meus planos tinham você no meio, e morrer não tinha você."
 Vitor Brauer - Dezembro http://vitorbrauer.bandcamp.com/track/dezembro

quinta-feira, 13 de outubro de 2016

escuro II

eu não quero trazer ninguém
para esse lugar escuro onde vivo
dentro da minha cabeça
eu não quero trazê-lo
posso falar sobre isso
mas dispenso visitas dentro
por aqui dói demais
é tudo agudo e áspero
cheio de arestas
e lacunas

prefiro visitar os lugares luminosos alheios
ou, ainda, os que apesar de escuros,
ainda permitem caminhar
não quero ser sombra
quero ser Lua
satélite lânguido e pálido
que ilumina os amantes apaixonados
sexto Arcano Maior:
você quer caminhar comigo?
segure minha mão
enquanto te for possível
e soar doce
não pedirei para ir além
aceito o cabível
reflito sobre a transitoriedade
impermanência que permeia tudo
e a todos

"estejam em paz", ela disse
é o que desejo a eles também
a elas
a mim própria

nós que tentamos muito
nós para quem os dias são desafios
que por vezes beiram perigosamente o insuportável
nós que tentamos muito
cansamos muito

um copo d'água
e um abraço
compreensão
não é por querer que me sinto assim
não é por falta de tentar

às vezes sinto que o mal-estar reside até nos meus ossos
ainda estou cheia de amor, contudo
o que talvez seja uma potente redenção
quando se é depressiva
renovo minha ligação com a vida
renovo meu pacto com minha própria vida
de bom grado

me quebrei tantas vezes e de tantas formas
arrebentei meus sentimentos gastos contras as rochas
me arrebentei todinha pela estrada
meus poemas são cheios de metáforas
sobre pedaços e cacos

ainda há amor, contudo
e muito
não imputo a ninguém salvar minha vida
este ofício é intransferivelmente meu
o que peço é hiatos de paz
e doçura

ainda que quebrada, ao lado dele me refaço
inteira
cada dia e cada noite
vagalumes e estrelas reluzem mais belos
durante a noite
sei que por aqui "é escuro e frio
mas também bonito"

Sol na casa 12 oposto a Saturno
brutalmente oposto
apesar disso, Lua em câncer
domiciliada no meio-céu
amo tanto e amo amar
e amo amá-lo
"o amor comeu meu medo da morte"
embora insone
tenho um bom par de olhos
para olhar quem escolhi próximo a mim
quando minha mente não quer descansar

e apesar da frustração que por vezes me exaure
se eu pude conhecer alguém assim
e ser amada em minhas fragilidades
se jamais preciso pedir perdão por ser eu
então há algo de muito certo
em todo esse processo

a dor não é mais real do que a alegria
do que os bons momentos
do que o amor
a vida é real em sua multiplicidade

próxima a ti
minha vida floresce mais vívida
intensamente
profundamente
intimamente
delicadamente
no contato com tua alma
emergem e redescubro
as partes minhas mais bonitas
que, afinal,
sobreviveram a todo caos

gratidão pelas noites
e pelas manhãs.

terça-feira, 11 de outubro de 2016

Refúgio

Que coisa impressionante é o amor e sua capacidade de abrir os asfaltos estéreis que nem a flor do Drummond, de ocupar os espaços e transbordá-los, de romper limites arbitrários para traçar caminhos para outros mais humanos e solidários. 

Amar é insurgir contra o tempo da máquina e criar outro. Um tempo e um mundo novo em que tudo brilha diferente. Tempo de delicadeza. De vozes baixas. De arder, passional & febril, tanto quanto de repousar na suavidade. Suspirar e repousar lado a lado. De mãos dadas. Ou no colo de alguém. A vulnerabilidade da entrega. E a beleza que reside no inefável. Na intimidade. 

"Eu dei-lhe a flor de minha vida"
Tempo e sinceridade no estar ali são algumas das coisas mais preciosas que você pode dar a alguém.


Amar é uma dádiva.
 

Mas escolham bons solos para as sementes. Na areia, não costuma brotar. Regar areia geralmente é vão. Não se trata de atribuir culpas, e sim de respeitar a natureza alheia. Escolher permanecer, frente ao amor e a intimidade, é um ato de coragem tanto quanto deixar ir quando não se cabe mais ali.

A vida é custosa demais para termos mais peso nela. Merecemos refúgio. Espaço-tempo coexistindo com alguém que te permita digerir a vida. E cuidar do território sagrado que é o espaço físico e psíquico do outro para que o contato entre uma terra a outra, ou um mar a outro, seja nutritivo. Que o conectar seja são, que seja doce. Merecemos refúgio.
{tenho tido. }

segunda-feira, 10 de outubro de 2016

mother did it need to be so high

eu faria quase qualquer coisa pela oportunidade de te dar um último abraço 
mas infelizmente isso é impossível
só me resta viver com a saudade e carregar esse fardo 
o amor de outras pessoas ameniza um pouco esse vazio e esse terror da tua ausência
e de ser obrigada a viver com essa ausência, indelével
eu progredi tanto mas isso sempre vai me rasgar e arrebentar todinha
essa falta
a despedida não foi só prematura, foi-me arrancada
e de um jeito muito brutal
e não há escapatória se não viver com isso
o melhor possível

eu juro do fundo do coração que tô tentando ficar bem
ser feliz, até ficar viva
não tentar te seguir do outro lado
não te imitar na morte
e suicídio já era uma questão mais antiga na minha vida antes do seu
e o quanto você me ridicularizou por isso...
 
saudade do jeito que você mexia no meu cabelo
do som da sua voz e da sua risada
escrevi prosa desde criança, agora também faço poemas
queria mostrá-los a você
queria cantar pra você
aprendi Father & son, do Cat Stevens

eu passei na UnB um mês depois do teu suicídio
quem diria né
mas nunca consegui cursar
já se passaram 4 anos
em novembro você faria 59 anos
dia 21
uma das minhas melhores amigas é escorpiana
você odiaria ela
você parecia me odiar às vezes
sei que era um quadro mental grave
mas as marcas ficaram
eu também fiquei
e dói tanto, ninguém deveria ter de passar por isso o suicídio da própria mãe
qual o peso simbólico de quem te colocou no mundo não conseguir suportá-lo?
eu ainda tô aqui, apesar de tudo
queria poder te abraçar e poder deitar a cabeça no seu colo
e queria que você tivesse orgulho de mim
ninguém me admirava tanto
e ninguém me destruiu tanto, também
mesmo antes de morrer
meu cabelo todo ficou mais fino e mais ralo depois que você morreu
não foi uma queda, foi simplesmente acontecendo agora ele tá azul
lembro de você achando o máximo eu com uns 6 anos te falando sobre a fase azul do Picasso
melancolia
você dizia que eu fui a gravidez acidental mais linda do mundo
não queria ter perdido você assim
espero que você esteja em paz
e que um dia eu tenha pra mim também.

sexta-feira, 30 de setembro de 2016

escuro

29.09.16

eu estou me esforçando
mas pareço nunca conseguir sair
desse lamaçal escuro de dor
esse lodo estranho
e anti-humano
que é a depressão

estou me esforçando
para aprender a nadar sem me afogar
a dançar no escuro
e a saber pedir velas
quando beira o insustentável
nessa noite escura da alma
que parece interminável

"a gente ama feito a Frida Kahlo
e morre feito o Elliott Smith"*
estou tentando não morrer
estou tentando não morrer
eu juro
por favor,
acredite em mim

a maior parte das pessoas
não se dá conta
da grande conquista que é sobreviver
parece algo indigno de nota ou aplauso
algo dado, óbvio, nada a ser parabenizado
pensar isso é coisa
de quem nunca quis muito
muito
morrer
pois então sobreviver se torna vitória, sim

abrir os olhos, viva
ainda que se tenha dormido pessimamente
tomar banho
comer algo, nem que seja miojo
talvez lavar louça
como alguém pode se orgulhar disso?
bem, eu posso
alguém que já odiou cada batida do próprio coração
por ser sinal da permanência da vida
alguém que já quis chorar toda manhã
e amaldiçoou seus dias
por continuarem vindo
um após o outro
um após o outro

eu ainda queria queimar certas memórias
que tanto pesam no meu corpo
nos meus olhos

"a responsabilidade é um golpe do meu inconsciente
para me manter viva.
as pessoas, elas não sabem
como é ser triste
elas mal aguentam estar tristes."**

vez ou outra escuto que sou alegre
não é mentira
quando estou bem, a alegria é proporcional
a saber quanto custou-me estar ali, viva
e abraço e amo meus amigos
e ao Sol, a Lua, as estrelas
Madre Tierra em toda sua grandeza
sorrio como sobrevivente que sou
é isso é muito poderoso
ainda que eu o saiba
frágil
ainda que eu me saiba
frágil

a vida é um presente do Universo
que eu não sei muito bem como lidar
mas eu juro, hoje
apesar de tudo, tudo
é um presente que não estou tentando devolver
é um presente que estou tentando levar
até o fim

(eu não acho que precisava ser assim
sermos forjadas pela dor
pessoas como eu
quebram
ainda assim
estou buscando seguir)



*paráfrase de Vitor Brauer - Amor e Morte http://vitorbrauer.bandcamp.com/track/amor-e-morte
**Patricia Nardelli - Saiwalô https://patricianardelli.wordpress.com/2013/07/18/espantalho/

sexta-feira, 23 de setembro de 2016

"você é uma sobrevivente do caralho"

para Luana e Louis, que também o são
para Aninha, que me entende obscuramente
e para Laravilhosa, por tanto amor de graça


o dano ficou mesmo sem intenção
percebe a fragilidade das coisas?
todo cuidado é pouco

ontem bêbada deixei minha caneta cair
debaixo da porta da sacada da casa
do meu amigo
na ânsia de tirá-la, enfiei ela mais pra dentro da porta
fora do alcance de meus dedos
ao final da noite pedi ajuda para pegar
e ele conseguiu fazer isso em poucos segundos
e é com ela que escrevo esse poema agora
esses fragmentos soltos, retalhos
de pensamentos

dormi mal a semana toda, exceto ontem
bendito e maldito é ocupar minha própria pele
sagrado ofício, intransferível
e tão doloroso

sou multiforme
multifacetada, lapidada na dor e no riso
densa como água escura, doce como água gelada
sinuosa como são os rios
mar adentro, vida afora
vida aflora
escorrendo pelos poros

e eu que tenho a memória
congestionada e parcialmente arruinada
pela depressão
lembro-me das roupas que usávamos
na primeira vez em que saí com ele
detalhe trivial que só comprova que
"A memória guardará o que valer a pena. A memória sabe de mim mais que eu;
e ela não perderá o que merece ser salvo."
- Eduardo Galeano

"E é isso que quero: partilhar nosso tempo, embora nosso tempo
seja feito
de silêncios a anônimos
(...)
Sonho dobrar uma página dessas vozes todas. Todas minhas.
Sonho dobrar essas vidas de vozes que choram."
- Vítor Brauer - Dobrar (part. Marcelo Diniz)

terça-feira, 20 de setembro de 2016

navegar

19.09.16

tire o medo do caminho que eu vou passar com meu amor
segurar firme a mão do outro e pular
no abissal desconhecido
universo alheio
tire os calçados e deixe na porta de entrada
pise com cuidado ao entrar noutra alma

acenda uma vela pr'Oxum
talvez nem careça de perguntar pra sua orixá
se amor só é bom se doer
bom mesmo é viver
saúde a gente constrói
é no cotidiano convívio
e na confiança íntima, contínua, tácita
saúde no amor é dádiva

segurar firme a mão do outro e pular
respirar fundo e caminhar
(ou pedalar)
inspirar e expirar e sentir o gosto
o cheiro, o tato
a memória que outro corpo carrega
reciprocidade explícita é dádiva
tentativas que florescem e frutificam
fluem, nutrem
a alma

amar e permitir ser amada
ser amada e permitir amar
chorar lágrimas salgadas e aceitar
que estar perto exige encarar
os pedaços nossos que gostaríamos de negar
reuni-los e cantar uma canção
que una todos os ossos cansados
costurar os fragmentos de si soltos pela estrada
"desenha minha vida na tua"
borda meu caminho no teu

se as ondas escuras ameaçarem me tragar
sou sereia e vim de uma ilha
(ele também)
e nado furiosamente para não me afogar
posso mergulhar no mar escuro
se for para emergir maior
mais sã, mais inteira
pulsante
posso até aprender a surfar
importante é sobreviver
o melhor possível

fechar os olhos e sentir em cada poro
paixão
vibrante
sentir com consciência o quanto custa
o mero ser
e apesar de tudo isso
honrar as partes minhas em ti
e as tuas em mim
ousar viver o novo
e puxar pra mais um beijo
com gosto de lua e memória de mar.

segunda-feira, 19 de setembro de 2016

Que é escuro e frio mas também bonito

para Filemon e Luísa Brandão
e para Gabriel que foi cantar noutro lugar

- Sabe - ela disse, aproximando-se da vela acesa -, cometi demais já o erro de achar que o amor me salvaria da depressão, essa interminável noite escura da alma. É um erro que não preciso cometer mais.

Assoprou a vela.

Escuridão.

Outras velas, outros quartos, outros templos, outros amores, outras vidas.

Sempre existe luz.

E sempre existe o terror da noite.

Estamos tentando aprender a arte de dançar no escuro.

domingo, 4 de setembro de 2016

sobre viver

A loucura é o que restou do que tentaram me tirar
a minha voz dissonante fustigada pela cidade
grita o que me roubaram
e eu exijo: devolvam
quem eu podia ser
mas não fui

Não fui aquela lá
fui isso aqui
basta para alguém?
bastará para mim
farei bastar
custe o que custar
honrarei estar na minha pele
e não de outrem

Se tenho CID, ainda exijo
no meu espaço-tempo
viver como escolhi
e ser quem ousei ser
e insurgir e romper e traçar
para chegar do outro lado
e ser quem quero me tornar

Minha mãe foi tipo elefante:
foi para perto da cidade natal
para morrer
pelas próprias mãos
suicídio não é poesia
poesia é o que me resta
para lidar
com o que sobrou
com o posterior

Do alto do precipício forjado
em busca de sanidade
nos moldes dos outros
sou aquela que quer findar diferente
do que o que tentaram me fazer ser
contemplo o abismo e não pulo
voo para o outro lado
escolho outro caminho:
o meu.

segunda-feira, 22 de agosto de 2016

incognoscível

para Caio Victor Siqueira e Aryanne Audrey, por vivermos buscas análogas e para Augusto Miranda, amizade virtual com apoio real, por partilharmos reflexões orwellianas "Podiam desnudar, nos mínimos detalhes, tudo quanto houvesse feito, dito ou pensado; mas o imo do coração, cujo funcionamento é um mistério para o próprio indivíduo, continuava inexpugnável." - 1984 aprendi que transcender a margem os limites impostos pelo outro lado do laço no tocante a intimidade é algo dado, oferecido, conquistado conquistado não como se invade e saqueia [uma terra a ser colonizada (meu amor é anarquia, não hierarquia ou domínio) o território sagrado que é a alma, a vida o espaço psíquico e físico do outro é conquista descolonizada erigida consistentemente progressivamente sinuosamente na base do cuidado quem quiser adentrar, pise sempre com cautela há mais quebras graves no território do outro do que um mero pisar e quebrar em galhos secos há quebras mais severas ocasionadas por descuido como evitá-las? atenção plena reflexão incessante uma dose de sorte de quebra de paradigmas e ressignificar os sentidos e sentires entrar no território do outro e da outra é privilégio é espaço sagrado sacralidade independente de teísmo o amor é sempre metafísico não? creio que sim e a magia cotidiana do sentir aos meus olhos é contra hegemonia solidariedade anticapitalista a medicina da empatia e nessa pedagogia diária sinto-me grata por estar viva para depois de quase arrebentar de tanta dor ser presenteada pela vida experienciando cores tão bonitas quanto as tuas.

sexta-feira, 19 de agosto de 2016

Apaixonar é se perder. Perder-se também é caminho.

Talvez o ápice da paixão seja um pouco incompatível com a vida. Pathos, patologia, paixão: mesma etimologia. Talvez, porém, um certo nível de paixão seja exigência para as poetas. Não necessariamente por alguém, mas facilita.

Em todo caso, a pulsão imensa, a ânsia, sentir o coração mais forte, sentir suas batidas por todo corpo. Sentir as mãos suadas, ou geladas, ou tremendo. Sentir uma angústia criativa, se bem direcionada. Destrutiva, se não contida ou transmutada. Ser roída viva pela violência transbordante de um sentimento. Passionalidade, a onda que traga. Afogar-se no outro. Ou em si. Um mar de possibilidades.

Há quem tente resistir. Eu não tentei.

Aceitei. Me entreguei. Entrei no mar.

Afoguei?

Não sei.

Tenho tentado aprender a nadar. Entrar no mar com cautela. Bóias seriam de todo inúteis. Talvez entrando no mar com mais calma. Com mãos calmas.

Os impulsos são viscerais, contudo.

E o mar alheio é sempre incógnita. É escuro, e mesmo os mares mais límpidos e turquesa guardam segredos. Todo mar tem mistérios. Todo mar é mistério.

Sou d'Oxum. Amo e respeito Iemanjá, sou uma boa filha das águas. As minhas, porém, são as doces e geladas. A água da cachoeira e dos rios. Suave e sinuosa, a água boa de beber. Água que nutre. O amor é o domínio dela, Oxum, orixá da beleza e da riqueza.

Desconheço riqueza maior do que amar e ser amada, inclusive.

Oxum também é senhora das lágrimas. "Pergunte ao seu orixá: amor só é bom se doer?" Preferível sempre que não doa. Mas se a dor é inerente a vida, como não ter suas aparições no amor, que é vida pura?

Vida que pulsa. Vida que finda. Vida que pune e recompensa. Vida que sangra e que cura, vida que aspiramos arduamente tornar digna de ser vivida.

Paixão é a patologia de amar com tal intensidade que beira a loucura. O desespero. Paixão é falta de controle.

Apaixonar é se perder.
"Perder-se também é caminho."

Tracemos caminhos doces. Abandonemos os que traem a nós.

Pois se o amor não for libertário e emancipatório, criação e autonomia, se o amor não for potência que liberta e rompe limites, então o que será?

"Amor livre? Como se o amor pudesse ser outra coisa que não livre!" - Emma Goldman

terça-feira, 16 de agosto de 2016

sobre medos e amores II

as pessoas tem medo da palavra amor
e eu tenho medo da palavra suicídio
as pessoas tem medo da vulnerabilidade
e eu tenho medo dessa variação perversa de morte
violência brutal auto-infligida
violência simbólica da falta, da ausência
para sempre marcada na carne e na alma de quem fica

as pessoas tem medo da palavra amor,
e eu tenho medo, porque conheço,
do vácuo do excesso de dor
que resulta
num suicídio
e sua notícia

as pessoas tem medo da palavra amor
e nenhum medo nessa vida é fraqueza
eu, no entanto, temo outras coisas
e me dou o luxo de amar e sentir imensamente
e enxergar nisso fortaleza
("it takes strength to be gentle and kind",
gravei na pele)

as pessoas tem medo da palavra amor
e respeito, contudo, meu maior medo e receio
meu maior gatilho nessa vida
é a palavra suicídio
não é a palavra morte
nem despedida
nem rejeição
meu maior gatilho é a palavra suicídio
porque perpassa uma miríade de acúmulos
de sofrimentos indizíveis
que resultam na dicotomia absurda e dolorosa
da dor de não querer mais ficar viva
e a dor de ficar viva
após alguém que tinha uma parte nossa
partir assim

há quem tenha medo da palavra amor
mas eu amo muito e sempre
e digo
porque triste mesmo para mim
é morrer dessa forma supradita
tristeza de fato para mim não é não ouvir "eu também"
tristeza é querer e nunca mais pode dizer isso
para alguém ouvir
viva. vivo.

segunda-feira, 8 de agosto de 2016

contato

se eu não caibo na vida dele
então eu não preciso caber
então eu tenho de me bastar
então eu tenho de desistir

se não há tempo ou espaço
há de fato falta de vontade
se não há vontade de contato
resta-me o movimento retrátil
de introspectivo recolhimento

se não há dois de copas
sempre haverá o eremita
se não há reciprocidade
sempre é possível recolher meus braços e meus cacos
e caminhar resignadamente para o outro lado.

segunda-feira, 1 de agosto de 2016

reengenharia dos afetos

23.07.2016

para S.G.

amar você
tem sido uma das maiores dádivas
dos últimos dias
parcialmente em silêncio
com algumas várias pistas

se o amor é cuidar de um jardim querido
o cuidado é lindo em si
cuidado com as sementes
cuidado nas escolhas de adubos
para fertilizar a terra
cuidado com a água e o sol
e sempre pode florescer ou não
pode haver seca
pode haver pragas
num outono pode brotar
brotar magnífico, nutritivo
noutro pode fenecer

a magia da colheita
é a recompensa do esforço
frutos e flores possibilitados na base do cuidado

a magia do plantio, contudo
reside no cuidado em si
sem saber o que virá, nem como
a magia do plantio reside em saber plantar
com a delicadeza que exige a natureza alheia

saber plantar inclui saber esperar
e saber plantar inclui a noção sã
de que todo esforço pode vir a não ser flor
mas não será em vão

pois ao plantar com atenção plena
com devoção sincera
a jardineira encontra, se não frutos doces
frutos metafísicos e oníricos
ao plantar dentro de si
novos horizontes de esperança

anoiteça o que anoitecer
plantei e fui feliz
por crer que poderia encontrar
um solo em ti.

terça-feira, 19 de julho de 2016

cálido ii

12.07.16
eu que ando sempre cansada
esta noite sequer dormi muito bem
mas acordei com um sorriso nos lábios
e o coração pulsando mais vivo
e mais forte.

domingo, 10 de julho de 2016

Por Amrit Brar, via http://musterni-illustrates.tumblr.com

quinta-feira, 7 de julho de 2016

lua em câncer

se sinto demais
demais para quem?
a mim basta
por vezes transborda
vale a pena transcender a margem?

se sinto muito, consigo
auxiliar outrem a sentir mais
se amo tanto, permito
a quem tem amarras
ser amada e amar

se dói tanto, sinto
a ambivalência da empatia
conectar-se com o sentir leva a consciência
e a consciência da luz e acima de tudo da sombra
liberta
quando estabelecemos nossos próprios caminhos
da forma certa

para dentro é escuro
e é contudo onde realmente está a paz
buscando a fundo achei muita tralha
muitos estilhaços de mágoa na carne fraca

no final
se o amor é a maior medicina
disso estou sempre cheia
e transbordo não só de lágrimas
mas também de afeto pelas mãos, olhos
palavras
e assim sigo ora trôpega ora confiante como O Louco
porém seguindo pulsante já é muito
e mais do que suficiente.

quarta-feira, 29 de junho de 2016

ligando os pontos

não há como ser uma conexão real entre duas pessoas
e só uma delas ter sentido
conectar-se a algo
pressupõe, entre almas,
uma dose mínima
de afeto mútuo
ainda que tácito
apaixonar-se pesa demais
quando feito por só um lado
só um lado não forma um laço
só nó

pode até ser amor
não será, contudo, conexão
se é unilateral

a entrega total
exige devoção
e um tipo de cuidado
que só funciona
se oferecido de bom grado
do contrário
é auto-engano
e hemorragia verborrágica vã

quinta-feira, 23 de junho de 2016

catando os cacos

para Beatriz, que me inspira e a quem me conecto
para ela que carrega o mesmo nome da minha mãe 
mas diferentemente dela, tem conseguido com maestria permanecer viva

o suicídio é minha cicatriz indelével
são hesitation wounds 
profundamente gravados na minha pele 
e na minha carne
ainda que invisíveis 

e pessoas que não se sentem assim
simplesmente não entendem 
curioso eu já ter ouvido que parecia alegre
que não parecia depressiva 

não é mentira
mas também não é muito verdade 

eu tenho olhos cansados
e um coração cheio de amor 
eu tenho esperanças gastas 
e outras tantas renovadas 

eu carrego minha cicatrizes 
eu sei muito bem o quanto sou pesada 

eu não devo minha vida a ninguém 
ela pertence a mim
apossando-me dela, hoje quero viver 
é pesado, sim, existir
eu o sei bem demais 
eu passei tempo demais tolerando mal a vida
na ânsia de poder sumir um dia 

e eu sumirei um dia 
não hoje, porém 
hoje recolho a bagunça pelo quarto 
e as mágoas peso tristeza melancolia angústia desespero saudade
traumas 
saudade de uma casa que nunca foi minha 
hoje escolho recolher todos esses cacos 
e criar algo pra fora
que expresse a ambivalência de dentro 
sem contudo eu ser uma poetisa suicida

estou tentando ser uma poetisa viva.

sábado, 4 de junho de 2016

estado de natureza

um corpo que cai
ossos que quebram
pulmões cheios d'água
olhos também
gastrite nervosa
dentes rangendo
cabelos caindo
fôlego curto

dormir pra esquecer
dormir pra tentar esquecer
dormir pra ensaiar morrer

boca seca
vícios clandestinos
medo de se importar
medo de ser tocado
medo de amar

um emprego sem graça
uma graduação frustrada
falta de tempo
interações automáticas
saúde em segundo plano
mas culpa em primeiro
orar sem ter fé
descrer por ter ódio
livros não lidos
filmes mal assistidos

pedaços por toda parte
uma tonelada de saudades
buscas incessantes
e o eterno retorno ao vazio
velho conhecido
de quando o fado de viver
se torna abissalmente excessivo.

domingo, 29 de maio de 2016

Aos pedaços

Eu perdi um amigo e então se abrem
as feridas antigas
as feridas do que restou do que sou

Eu perdi um amigo e agora acabou
de novo
a chance
de recomeço
eu perdi um amigo e não sei lidar
eu perdi minha mãe e achei que isso fosse me matar

Noites insones e o pesadelo era real
ela havia tirado a própria vida e não havia nada, nada
capaz de salvar

E agora o que faço do que restou
o que fazer com todos os pedaços
com todos os machucados
o que fazer num mundo tão hostil e cruel
que jamais cessa de mutilar
um coração já tão pesado

E o que faço agora com todos esses pedaços
dele, dela
de quem ficou e foi
o que faço com as metades arrancadas
prematuramente do coração de quem os amava

O que faço eu com todos esses pedaços de mágoa
com esses estilhaços de carne pesada
o que fazer com todas as partes fragmentadas
o que fazer de uma existência retalhada

O que fazer de si
para que imersos no caos abissal de sentir
ainda seja possível estar aqui
para que pareça viável seguir
para que possamos seguir

O que fazer da vida
que não seja morte
o que fazer da vida
para que não seja morte
para que se finde de forma diferente

O que fazer da vida e morte
para não sermos os próximos
para que não haja próximos
para que descansar nao exija cessar de viver

O que fazer da vida
para ela parecer digna de ser vivida
e não um entrave no caminho para os braços da morte

O que fazer da minha vida
para conseguir continuar viva
mais dias
apesar
do pesar
de pesar
e rasgar.

A um amigo suicida

sexta, 27 de maio de 2016

A um amigo suicida

Não tenho nenhuma raiva
Não tenho nenhuma mágoa
Querido amigo

Não tenho a pretensão
De dizer que compreendi sua dor
Rasgando
Partindo
Ao meio
Estilhaçando pedaços de alma

O que tenho é amor
Para dizer
Queria que você tivesse sobrevivido
Queria que você
Estivesse aqui
Comigo, com elas
Eles, nosotros
Queria que você
Estivesse vivo
Cantando, sentindo
Respirando, abrindo
O caminho não traçado
Que levaria ao verdadeiro lar
Para que apesar de tudo
 Você não se sentisse despedaçado

Eu queria que você acordasse amanhã
Talvez ainda triste, rasgado
Contudo, acordado
E então, querido amigo
Todos os abraços
E apoio
Toda forma de amor
Direcionaríamos a ti
Para que você pudesse seguir

E acordando ferido
Porém cercado de carinho
Você pudesse compreender
Na prática
Que passa
A dor passa
O desespero passa
O desamparo passa
A negação passa
A tristeza passa
Sim
Se seguir
Se seguir

Hoje você não está aqui
E te envio meu amor
Para que na hora de voltar
Você saiba
Que apesar de tudo
Você tem o direito de estar aqui
Inclusive, sendo feliz

Daqui deste lado
Envio amor a ti
Envio amor a ti
Envio amor a ti.

domingo, 24 de abril de 2016

"faltou mãe na sua vida"

um dia na casa do ex
fiz babaganoush
pra mãe dele, com carinho
carbonizei a berinjela na chama do fogão
bati no liquidificador, temperei
fiz meu melhor
ela disse que adorou

algum tempo depois, um dia
ao falarmos sobre o filho dela
ela disse
"aquele dia que você fez a pasta, eu percebi
que faltou mãe na sua vida
e ele tem a mim e não aproveita"

e aquilo me rasgou em várias direções
por ser verdade que ele não aproveitava
a mãe dele ali, viva
e me rasgou também o fato de,
 mesmo eu tendo feito meu melhor ao cozinhar,
eu ter soado desajeitada, inábil
por ter mesmo me faltado mãe
e por minha mãe dizer, em tom de crítica
quando eu não morava mais com ela
sobre minhas roupas que ela achava não tão bem lavadas
(especialmente meias)
"está faltando mãe na sua vida"
e eu ficava incrédula e irritada
claro que estava
e ela estava viva
e nesses momentos, viva e crítica
mas nunca entendeu que quem ruiu nossa relação
foi ela, não terceiros
e por Deus, as meias eram o de menos

me faltou mãe
me faltava mãe
me falta mãe
todos os dias da minha vida
falta a minha mãe
e pra mim minhas roupas estão limpas o bastante
o que faltou foi a parte minha que ela levou junto
para o túmulo.

segunda-feira, 11 de abril de 2016

até hoje
fico surpresa
quando alguém
me ama de verdade
e não digo nem romanticamente
mas nos campos da amizade
anos de solidão imprimiram um certo senso
de rejeição
e ainda me comovo e surpreendo um pouco
quando alguém me ama de verdade
ainda que eu ache que mereça
ainda que eu tanto dê
e é bom ser amada

romanticamente faz tanto tempo
que é melancólico lembrar
como era ser amada da cabeça aos pés
por alguém
desejada, querida
era doce ser profundamente amada
mesmo adoecida mentalmente
mesmo com a psique
toda desorganizada

hoje depois de tudo e com o auxílio do avô tempo
melhorei muito
a melancolia ainda existe
mas agora, é bem mais acompanhada de autonomia
como posso, caminho com meus próprios pés
ainda busco, contudo, algo profundo
e que eu possa eventualmente me conectar
novamente
com uma alma que queira
se conectar com a minha
verdadeiramente.

segunda-feira, 21 de março de 2016

teto

quando olho pra fotos de épocas passadas
sou a mesma pessoa doce e cansada
que só quer um colo pra chamar de lar
mas ninguém é teu lar
tornar alguém isso é acabar sempre sem teto
casa é dentro
bagunçada ou não.

abissal

"é preciso ter asas quando se ama o abismo"
mas com tanto abismo interno
pra que buscar outro lá fora?
minhas asas de Ícaro estão derretendo
e eu nunca chego
cada momento de extrema ternura me faz acreditar estar próxima
e eu nunca chego
e busco, procuro, insisto, respiro fundo
tiro cartas
e me indago
por quê?
e acreditei: conseguirei porque o amor é grande
e nunca chego
porque grande que seja, não bastará nem suprirá
quem escolheu ser difícil de alcançar
quem quer ser impossível de alcançar
e eu não chego
e é mais fácil alcançar seu rosto para um beijo
do que alcançar um coração sombrio que ele quer tornar inalcançável
meu amor é grande
mas é só meu
não vai transpôr o intransponível
o abismo que carrego já é fardo pesado demais
para alguém que não queira estar lá
eu estando no seu
eu estando nas portas do seu abismo e cansada de bater a porta
pedindo pra entrar
peço então licença pra me retirar
volto quando for chamada
volto quando for bem vinda
volto quando for querida
do contrário
"pra que correr tanto se eu não vou te alcançar?
pra que deixar esse encanto em mim
se há tanto mar."

domingo, 13 de março de 2016

delicadeza

mãos bonitas e macias
quentes
nas minhas
no meu rosto
no meu corpo

cabelos escuros e olhos idem
sorriso travesso
descansar com o rosto no meu peito
em silêncio

braços passados
pernas enlaçadas
alguma coisa profundamente familiar
entre o cuidado e delicadeza
entre a suavidade e respeito
entre as vozes sempre baixas
entre o cálido e tácito

a beleza etérea
de um anjo caído
das trevas do ser
no caminhar árduo
e o fardo e o fado
de viver

urutau da noite escura da alma
voe para onde quiser
o voo é seu
para a direção que escolher
se escolher a minha
farei bom uso
se escolher ser só
tea
ainda assim
tea
te amo
te apóio
te ajudo
e te seguro
quando o mar da vida balançar demais.

quinta-feira, 10 de março de 2016

passarinho preto

hoje minha professora disse
que as pessoas são fenômenos naturais
porque pessoas acontecem

pessoas realmente acontecem
algumas são fenômenos extasiantes
outras são desastres
outras só passam

neste maremoto que foram algumas passagens
ele foi uma chuva suave
não destruiu nenhuma janela
nutriu minhas flores internas
e agora começa a seca
mas em alguns meses passará
obrigada por irrigar meu solo cansado
de emoções gastas
meu solo rachado
está um pouco mais úmido
as sementes de vida
talvez consigam sobrepujar as ervas daninhas

obrigada, passarinho preto
urutau da noite escura de minh'alma
que dura há mais de 12 anos
a noite escura da alma que alguns xamanismos explicam como depressão
eu quis voar para dentro do seu coração
e, embora a chuva suave não tenha destruído nenhuma janela
a janela de dentro dele estava fechada

se os olhos são a janela da alma
sou grata a todos os vislumbres da sua
e se chegar seu dia de abrir portas e janelas
que entrem com cuidado
adentrem com cuidado
que o amor seja delicadeza e cuidado
por tão bem cuidar da minha
eu agradeço e recebo
sua estadia até a despedida
passarinho preto
urutau amado
estrela da noite escura de minh'alma.

prole

que o legado de minha humanidade
minha prole, minha herança
não seja minha depressão

se meu ventre um dia carregar uma cria
que ela não seja depressiva
porque transmitir esse inferno
essa desgraça martelando dentro da minha cabeça
essa tristeza, essa exaustão
quando nada basta e tudo pesa
quando respirar é um dom que eu queria devolver
eu não poderia suportar
gerar a vida para vê-la sofrer
filha minha, filho meu
se for para herdar essa dor
é melhor não nascer
se for para um dia desejar morrer.

(09.03.16)

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2016

metades

há muitos meses atrás
numa tarde ensolarada
açaí, pós-fim
"você foi uma parte muito difícil da minha vida
mas você foi uma parte que tinha de ter acontecido"
*
nunca nunca mais vai ser igual e a gente sabe
e cada um de nós com nossas metades
partidas
esperamos curar-nos
de lados separados
que bom que foi assim
durou e existiu
mas findou
como tudo
*
todos os amores são insubstituíveis
hoje não busco substituir nenhum
viver já é custoso por demais
o amor desvanece na sua hora sagrada
assim como o amor escolhe nos acompanhar
cabe a ele nos deixar
um amor meu coração já deixou
cedo ou tarde
aprenderei a deixar este também
como fui deixada para trás
e deixemo-nos ser
sós
seja feita a vontade do outro lado. 

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2016

unilateralidade

eu abraço tão forte
e me seguro
esquecendo que amar
não transpõe os abismos
que a vida impõe
nem os impostos
pelo outro lado
do laço.

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2016

but you're so young

o menino bonito
dos olhos cansados
da voz baixa
das roupas pretas
desgastadas
melancólico
passos lentos
sorriso lindo
costas largas
caderno rosa

o menino doce
profundamente misantropo
assustado
fragilizado
adorável
que gostava de crust
e um pouco de mim

o menino alto
reservado
perspicaz
amargurado
ansioso
depressivo
amado

o menino lindo
que pegou meu tambor
e colocou sobre a mesa
e tentou me ensinar um pouco
antes da prova
e eu mal escutava
aflita demais
meses antes de o menino
tão jovem
e tão tímido
se tornar o menino
que meu coração escolheu

o menino que amei
e que ainda amo
na calada da noite
baixinho o bastante para que ele possa escutar
se assim quiser
se quiser a mim

o menino sincero
que só queria um pouco de paz
e eu quis ser a paz dele
e ele quis seguir
sem mim

o menino que é bem vindo
dentro do meu coração
e a quem espero que a vida cure
mais do que já feriu

o menino livre
a quem eu quero bem
que eu quero que seja feliz
a despeito dos caminhos que decidir

mas se ele escolher estar nos meus braços
para cuidar e ser cuidado
para compartilhar o árduo fado de viver
se assim ele quiser
eu estarei aqui
enquanto couber
na verdade dos tempos
na ressonância de coexistirmos
próximos assim
com sua  presença única e doce
junto a mim.

terça-feira, 16 de fevereiro de 2016

all we ever wanted was everything

l'amour c'est une patifarie

Eu lembro de seus olhos, e eu lembro do seu calor, e eu lembro dos seus braços, e eu lembro das suas lágrimas. E eu lembro da sua voz monocórdia, dos seus olhos tão cansados e tão doces, e de como você às vezes fechava os olhos enquanto ria. E eu lembro de você no meu colo, e eu lembro de eu no seu. E eu lembro daquela vez em que você literalmente dormiu nos meus braços, com a cabeça no meu peito, na cama, e de como eu tive dor nas costas depois, e do quanto valeu a pena. Eu lembro de todos os "eu te amo" que nunca me foram respondidos, exceto por gestos de delicadeza condescendente. Como me puxar mais pra perto. Mas jamais dizer "eu também". Eu lembro da sua inocência, da sua leveza pesada e ambígua, dos seus silêncios e de como seu carinho era bom. De como era acolhedor acordar no meio da noite, angustiada, e poder passar o braço ao seu redor. E você não movia um músculo no sono tão pesado. Eu lembro de como a roda do dharmma girou, e eu acordava antes de ti pra te levar chocolate quente, como tanto já fizeram por mim. Para que seu acordar doesse menos. Para que você se sentisse amado. Para que se sentisse profundamente amado, assim queria eu. E assim se sentindo, pudesse se permitir talvez sentir o mesmo por mim. E pudéssemos seguir na apoia mútua dos bichinhos, um cuidando do outro neste mundo hostil. E eu lembro do quanto eu gostava de te ver tocar violão, do quanto eu gostava de fazer nada do teu lado. E eu lembro de dormir nos seus braços ouvindo Sacrilege dia 20 de novembro, um dia tão difícil para mim, por ser anterior ao 21. E eu lembro de tudo que eu te dei e de tudo que você deu para mim. Só pudemos dar o que tínhamos. Mas o que eu tinha foi seu. Resta-me agora deixar a medicina que é o tempo passar para desanuviar as mágoas da unilateralidade do fim. O fim sempre chega. E frequentemente parece ter chegado cedo demais. No tempo que nos coube eu fui feliz. Uma pessoa tão triste me fez feliz. Tenho esperança de que tenha sido mútuo. Dentro do possível.


"Can you take me to your heaven, I'm ready
I know the weight of my heart is too heavy
I will love you with all of the love that I have
Even if that means there's none left for me

I'll carry your cross now, baby
It's a blasphemous world today
(...)
I'll bury your pain now, baby
Are you happier now, happier now?"
Cold Cave - Underworld USA

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2016

por todas mis relaciones II

para minha madrinha amada Lua Bittes

tenho estado à flor da pele
mas de um jeito bom
de um jeito doce


de quando a imensidão da vida
multiforme
mareja os olhos
e é sentida no peito
e no entanto
não intoxica de desespero
emerge o clarão
do entendimento que leva ao seguimento

em julho de 2013 eu decidi escolher a vida
em maio de 2015 foi difícil manter a decisão
fevereiro de 2016
e eu reitero os votos

tenho estado à flor da pele
mas de um jeito bom
de um jeito doce
de quem quer viver
e não quer morrer
sabe?
eu sei.

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2016

por todas mi relaciones

amor mole em alma dura
tanto bate até que cura?

terça-feira, 26 de janeiro de 2016

depois da queda

Para Kenah, Clarisse e Juliana

eu amei um rapaz
e eu o amei
tão profundamente
tão intensamente
tão desesperadamente
que mesmo amando tantas outras coisas
eu queria deixar a Terra
quando a jornada junto a ele
acabou

nove meses depois
a vida floresceu em mim
a poetisa em mim
a curandeira em mim
a cozinheira em mim
a amiga em mim
a irmã em mim
o ser divino em mim
todas as partículas emergiram
e continuam a emergir
e seguindo e buscando
eu fui encontrando significados
razões e sentires

eu lembro daquele dia no hospital
e eu lembro que a dor era tão imensa que eu sentia que ela me deformava
e eu tinha quase vergonha das amigas minhas que estavam ali
e elas me viram num estado de desespero tão cru
e me amaram
e eu as amei
e tenho amado tanta gente
não romanticamente
e meus pedaços pela estrada
não são metades arrancadas
são fagulhas do eterno
são pedaços cintilantes lapidados na dor
são pedaços de cristais
com os quais presenteio minhas irmãs
e meus iguais.

domingo, 24 de janeiro de 2016

dormir só

durante as madrugadas
eu penso em quem eu amo
e do lado de quem não durmo mais

e eu me pergunto
se as pessoas que me amaram
também pensam
vez ou outra
no calor do meu corpo pequeno
do lado cama virado pra parede

eu preciso aprender a dormir sozinha
sem tatear pela cama
a falta de um corpo
que me desse segurança
eu preciso parar de procurar um lar
em outro corpo
e me contentar com um teto
com meus gatos
me contentar com o calor do meu próprio corpo
quarenta e poucos quilos de saudades

às vezes eu acho que se eu pudesse curar
a falta da minha mãe
subitamente, peças se encaixariam
minha psique se reorganizaria
e viver
doeria menos
mas cada falta e cada ausência
e cada perda e cada abraço
interrompido
são como sal esfregado nas feridas
são metáforas da saudade
e da dor que nunca passa.

segunda-feira, 18 de janeiro de 2016

Shine on you crazy diamond

Eu queria escrever um conto sobre saudades.

Sobre transcendê-las.

Eu gosto dos meus contos curtos.

Eu gosto das minhas metáforas e,
como escrevi uma vez,
escrever é a minha metáfora para sobreviver.

Eu queria escrever um conto sobre saudades
sobre como, apesar de tudo
a gente vive com elas
a gente sobrevive a elas
de todas as espécies

Eu queria escrever um conto bonito e eufônico sobre a falta
as faltas
metades soltas das saudades

Como já escrevi, também
quando escrevo sou rainha de um império imaterial
E ao escrever esse conto
eu sentiria que reescrevo levemente minha história
nesse conto haveria alguma lição moralizante sobre escolher lidar
escolher seguir
e ressignificar
as faltas

E eu não consegui escrever esse conto
essa noite
são quase 3 da manhã
e meus olhos estão cansados
e meu coraçãozinho está fatigado
de um jeito que esgota as ideias das metáforas
adequadas
para transmitir esse tipo
de esperança

fica um poema com pouco brilho
um poema que é o que deu pra ser
como todos somos, no final das contas
os sobreviventes do que conseguimos ser
no final das noites.