quinta-feira, 9 de outubro de 2014

Meninas

Para Yasmin Souza

Eu gosto de crianças, embora não conviva muito com elas. Gosto especialmente de meninas. Acho que elas são menos escutadas. Acho que elas ouvem muito sobre serem lindas, comportadas e doces, e ouvem pouco sobre serem elas mesmas. Sobre ser permitido a elas vicejar.

Gosto das meninas e busco ouvi-las porque fui eu própria uma menina com muito a dizer e execrada por ser muito inteligente. Hoje penso na minha insegurança com a minha própria aparência e no quanto eu ouvia que era feia e não consigo dissociar disso do desconforto que minha inteligência causava nos meninos da minha escola. Olhando minhas fotos, eu não acho que eu era uma criança feia. Acho que eu era bonita. Receio pensar a mesma coisa aos 22 olhando minhas fotos atuais, aos 20. E acho, também, que eu era uma criança e que eu não deveria ter aprendido desde cedo a vincular  minha aparência ao valor que me seria dado em sociedade.

Essa era eu com 10 anos, aliás

Voltando a digressão. Não é fácil ser uma menina. Se é difícil ser mulher, ser menina pode ser muito complicado também, porque as crianças são pouco levadas a sério. E eis que você é uma criança do gênero socialmente inferiorizado.

Eu fui uma menina muito melancólica. Muito só. Os livros foram meu consolo. Aprendi a ler muito nova, com 4 anos, acho, sozinha. Era Jardim alguma coisa e a professora nos disse o som de cada letra e como cada letra era. Um dia, andando com a minha mãe no nosso bairro, li na frente de uma casa de câmbio. "Alugo mobilete". Minha mãe dizia que eu li isso sem hesitar, sem gaguejar. Ela começou a rir muito alto - eu fiquei meio assustada. Enfim. Eu lia muito quando era criança. De Pedro Bandeira a mitologia grega. Com 10 anos li Revolução dos Bichos e apaixonei. Li também dois livrinhos do Voltaire e adorei.

Se hoje eu, com 20 anos, ainda me sinto só, frágil e deslocada, às vezes, ser uma menina era muito pior.

Uma vez eu conheci uma menina de 8 anos que ajudava a cuidar dos irmãozinhos e tentava lidar com a saudade do pai, que desencarnou (faleceu) quando ela tinha 3. Ela era canceriana. Eu convidei ela pra sentar no meu colo e conversamos. Eu disse que era ótimo que ela fosse tão forte, mas que ela não podia se esquecer de que era uma criança, e que segurar mais do que ela conseguia, um dia poderia fazer ela não aguentar mais. E eu disse que isso aconteceu comigo, e que eu não queria que acontecesse com ela. Ela disse "obrigada, tia".

Se um dia eu tiver uma filha, tudo que gostaria era de poder fortalecê-la na infância mais do que foi possível que me fortalecessem. Porque esse tipo de herança é sagrada. Sei, contudo, que minha mãe lidou o melhor que podia.

Nesse dia das crianças, que todas as meninas um dia possam ser livres de um sistema misógino que mina a potência mulheres que elas merecem se tornar.