quarta-feira, 17 de julho de 2019

ter-sol

meu olho está doendo
apareceu uma bolinha na parte vermelha
por dentro
dói quando eu pisco
eu vou marcar um médico
eu odeio médico
mas irei
me pergunto se está doendo
porque eu não quero enxergar coisas
que estão tão visíveis
que me estilhaçam por dentro
que me estilhaçam nas vistas

quando eu era criança
minha mãe teve um namorado violento
eu o odiava
e a odiava por aceitá-lo de volta
repetidas vezes
eu não conseguia ter empatia por ela
porque eu me sentia abandonada
ele sumiu com meu cachorro
ele se chamava Pupi
era um labrador cor de areia
meu padrasto me tirou muitas coisas
e eu não conseguia perdoar minha mãe por isso

com dezesseis anos me tornei feminista
e entendi porque ela permanecia
porque ela retornava
trabalhei meu perdão
dentro do que consegui

nós retornamos por tanta coisa
por medo, dependência financeira
emocional
por receio do julgamento alheio
retornamos por medo de morrer
e às vezes somos mortas ao voltar

contudo
mesmo em relações
que nem remotamente são tão violentas
por que eu volto?

amar patriarcalmente
é morrer diariamente
e eu quero
desesperadamente
viver.

segunda-feira, 20 de maio de 2019

53 Chien


recupero-me diante
de uma queda
recupero-me diante
da perda de outro altar

anoitece o cerrado
outonesço eu

kin oculto, kin guia
"se há tantas cabeças
quanto são as formas
de pensar
há de haver tantos tipos
de amor
quanto são
os corações"
e, talvez,
as orações

o cerrado
é uma floresta invertida
muitas das árvores que aqui se vêem
tem raízes do tamanho do dobro
ou do triplo
de suas parcelas
visíveis
o dobro ou o triplo
está sob a terra

o cerrado
é meu ser amado
minhas raízes tiveram de ser
profundas
para que eu não morresse
de sede
nem da falta

caminhos distintos
que se entrecruzam
tecendo momentos
que podem ou não durar
vale a potência do encontro
valem as estrelas e o luar
dentro da minha cabeça
por ter podido estar.

sexta-feira, 12 de abril de 2019

intransponível

11.04.2019

existem distâncias
para as quais não há palavras


existem caminhos
que só são possíveis bifurcados

existem destinos
bordados para não ser

existem profundos
que não há toque capaz de reparar

existem abismos
cuja única forma de atravessar
é voando
mas cansei-me
apesar de filha das águas
meus pés pertencem a solo terrestre
e embora cansada
exausta
de caminhar
me comprometi
eu vou até o fim

ontem um monge budista
disse:
"difícil é receber a vida na forma humana"
por ora é a minha

"corpo: perfeito instrumento de tentar".

sexta-feira, 1 de março de 2019

escombros

28.02.2019

às vezes me sinto como
escombros
ruínas do que eu poderia
ter sido

sacudo a cabeça e suspiro
eu não tive outra vida
eu não tive outra família
eu não tive outra infância
nem outra adolescência

eu tive o que a vida me deu
tive também amor
tive também cuidado
tive também incentivo
tive também meus dons
e os tenho ainda
e os carrego comigo

tive a vida que recebi
e tenho hoje a vida que escolho
tenho minha saúde
tenho minha coragem
tenho a consciência
do quanto me custou cada passo
para chegar até aqui

se a metáfora com escombros
e ruínas
me veio a mente
tenho meu flerte contra a civilização
contra a colonização
e a domesticação de corpos
e a tentativa de destruição
do espírito
promovidas pelo capital

como uma cidade abandonada
dia após dia, se deixar
se recobre de verde
gradualmente
heras cobrindo paredes
raízes rachando calçadas
se eu fosse ruínas de cidade
eu escolheria tornar-me de novo
floresta
árvores frutíferas
árvores floridas
árvores alquímicas
com o princípio mais sagrado
a vida
e toda cura
e toda morte
que ela contém.