sábado, 8 de outubro de 2022

harvest moon


(08.10.2022)

minha lua de todas as colheitas
pukem, pewü, walüng, rimu
minha colheita de todos os entremeios
entremundos
lemniscato, ouroboros 
espiralando
minha lua venusiana
guñelve dos meus dias 
estrela das minhas travessias

estrada acidentada
sempre foi a minha
não, assim não quis, não escolhi
os atrapalhos
os obstáculos 
mas elegi algumas travessias
contigo, a mais bonita 
minha lua que cura a nostalgia
da luz e da falta
das faltas

depois de desertos de monocultura
encontrei-me com o verde
nutritivo de nossas veredas
no planalto, na chapada
em ti meu solo encontrou morada
para sementes mais prósperas
não envenenadas:
resgatadas
melhoradas
germinadas

em corpos que faltam ou transbordam
das margens da heteronorma
contigo tateio e vislumbro
reocupar minha própria pele
este território que me foi exilado
contigo refloresto e floresço 
sob a lua de nossas colheitas
sob as bênçãos da cordilheira

como aprender uma nova linguagem
look baby, last night
eu sonhei que valia a pena continuar
porque em algum momento nos cruzaríamos
e a travessia, então
seria dotada de aprofundamentos
mais bonitos
como o sol
como a lua.

terça-feira, 16 de agosto de 2022

küyen

(21.07.2022)

epu küyen trawengü
canta Anahí Rayen  Mariluan 
duas luas se encontram
podem ser teus olhos cheios
enormes como as marés
os meus 
puxados minguantes
confluindo e convergindo
para más adentro 
mar adentro

epu küyen trawengü
duas luas 
noturnas 
vagando 
caranguejo das memórias 
carrega a casa nas costas
a minha fica tão mais bonita
a bagagem suaviza
na colisão entre nossos mundos
esta sim um encontro
sem mentiras coloniais de encontro 
quando é conquista
nossos saberes compartilhados sem invasão

encontro seu cheiro nos meus lençóis
suas palavras em meu coração
seu olhar enluarado
combinando com o meu 
epu küyen trawengü

além de lânguida, minha mãe me sabia 
lunar
nem eu nem ela conhecíamos 
os mistérios da astrologia, ainda
mas ela me viu todinha em Os benefícios da lua
de Baudelaire
meu oikodespostes
e sendo o astro da minha natividade
sendo minha lua domiciliada
quando te amo volto para casa
a âncora do navio desvia do suicídio 
one more time with feeling
o norte do nosso futuro escrito 
no hermetismo cabalístico
em que cada palavra dá sustentação a obra
sem cair
sem cair
a nós, sem provisão de dor 
desta já tivemos em demasia

travessia
epu küyen trawengü
desfazendo compressões 
encontrando constelações
a nostalgia da luz que sempre me perseguiu
alivia quando contemplo seu brilho 
que não agride meus olhos
ilumina minh'alma 
contigo minhas lágrimas de prata encontram lugar
para virarem kimün
sabiduría de nosotros 
vivos. 
 

quinta-feira, 14 de julho de 2022

10 anos sem ela

(04.05.2022)

eu era a Pepa da minha mãe

porque segundo ela, significava "semente"

em espanhol 

conheci por semilla

mas sempre serei a pepita dela 

do ouro debaixo da terra


minhas entranhas raízes 

sangraram sem estancar

por anos 

não são pele íntegra hoje

são fragmentos 

tantos 


alados

quebrados


nesse anos todos

tanta mitologia grega

Deméter e Perséfone

Dédalo e Ícaro

voo com o Sol, mãe

mas não a ponto de queimar minhas asas

ou a ponto de cair 

ou se cair, não a ponto de afogar

uso das artimanhas de Ulises

Odisseu 

protegido de Hermes e Atenas

que alguma vida também me deu 

crio caminhos e desfaço a teia 

toda noite se necessário 


teço errante a Chakana 

buscando ancestrais para amenizar 

a saudade 

que antecede a ti 

antecede até a mim

é saudade de viver pra cantar para as águas 

até o dia de voar sem medo de afogar


os tsunamis de meus pesadelos

crescendo na ilha da magia

o pânico insular pouco descreve o que senti 

ao perdê-la 

se até a isso sobrevivi

agradezco madrecita

por me trazer até aqui 


algum sentido um dia fará


ouro de Oxum

 (03.06.2022)

filha dela 
lunar e dourada
escucho a las plantitas 
acolhe o linalol 
rebela a Araucanía
não pacificada
revolução do manjericão 
axé que rompe cárceres 
vuela com el viento
dispersando sementes aladas
anemocóricas
dormência que se quebra 
com a respiração
nem sempre é ácido giberélico
nem sempre é sobre
escarificar 
por vezes é sobre
aguardar

sucessão
estratos de trauamas também cedem
para estratos levantarem
de cura
de vida
de caminhante
de buscadora

"aonde eu bebo água
o jaguar espreita
eu o vejo, sou um caçador
neste momento contemplo quem sou"
filha de Oxóssi
puxo meu ofá não para alvos de inimigos
não tenho  inimigos
exceto por mim mesma
quando quero partir
talvez nem ali eu seja inimiga
minha
é na partilha que vivo
me ergo, me lanço 
enraizo 

minha flecha
atravessa
os véus do Samsara
Prajnaparamita, chacronita
tudo é veículo
quando se quer chegar
adiante de onde se está 
con la fuerza de los ancestros 
jibóia, onça, águia
condorcito

minha flecha mira 
além

newen.

quinta-feira, 14 de abril de 2022

petricor

formas monogâmicas de viver a vida
dessa normose não comungo mais 
a monocultura que não é boa para trigo
(tenho Spica próxima ao ascendente)
milho
"Tonantzin doy gracias por el maiz"

a monocultura que não é boa para o solo
tropical
a homogeneidade artificial
leva a necessidade de veneno
e se ensina a alquimia
ou o velho raizeiro
que veneno pra remédio
difere a dose
há o que envenena e ponto
glifosato 
ou centralizar 
objetivos de vida num único amor 
ainda que grande
enorme e pulsante
imensos são os rios do infinito
que convergem para o mar
e para lá chegar, rio
não bota cerca
dela desvia, contorna
transcende
rio não é pra hidrelétrica
corpos não são para cárceres
físicos ou não 

a homogeneidade artificial
do monocultivo
leva a escassez artificial
que comédias liberais e Malthus
tentaram pintar como natural
natureza para eles é imutável
contanto que torçam seu funcionamento 
para alimentar a voracidade do capital
a escassez como dado natural
assim fica parecendo inescapável

a natureza tem de tudo
sem régua
quantificamos, dizemos, para entender
mas que tipo de entender está sendo produzido
numa sociedade que não converte este entender
num sentir-pensar
do cuidado?

arquitetura da nutrição
"a água é a mãe da cura"
ensinou mestra 
Dona Flor, do Moinho
e no pilão se mexe com quina
sucupira
vassourinha do nerolidol
terpeno do cerrado
água de Iansã vem varrer
do céu que não cai, não hoje
cantamos pra suspender 
o petricor e a micorriza
o rizoma originário
mangará ancestral
como o futuro que estamos a criar. 

domingo, 10 de abril de 2022

maturidade


há um preço em se envelhecer cedo
comum que se diga 
"meninas amadurecem antes"
também eu já pensei 
"indígenas amadurecem antes"
ao me deparar com jovens de 14 
com mais seriedade e garra na luta
que quarentões esquerdomachos

não passa de romantização do sofrimento
passar perrengue, fome
violência doméstica, problema de moradia
perder território
seja terra
seja o território-corpo
invadido desde a infância 
olhares abjetos
o medo constante
a espreita
uma polícia que não se movimenta
para salvar a vida de uma mãe
mas se movimenta pra cercear
um baseado consensual na praça 

e chamamos de maturidade, por vezes
a seriedade
precoce
que talvez
nem deveríamos ter 
nem deveríamos ter
que ter 
não foi escolha
não há escolha
quando é sua carne na jogada
a vida dos seus
quando se cresce se preocupando com sua mãe
não ser morta
com sua comunidade
não ser morta
se cresce, sim
se amadurece? talvez
a que preço?

levar a vida a sério
tem sua beleza
quando se é obrigada a isso, porém
desde tenra idade
não é tão belo 
é sobrevivência
e saudade infindável da infância
que pouco veio, pouco houve

aprender a ter leveza
tem sido um dos desafios e objetivos
dos meus últimos anos
contudo, compreendi
jamais rirei com a leveza
de quem pôde ser pequeno
quando se era pequeno
eu tive de ser grande
quando não tinha nem 30kg
hoje tenho 42
e um inventário de cicatrizes
acompanhado, todavia
por um inventário de alegrias
celebro minha própria força
e crio novas narrativas
é em comunhão que me curo 
verbalizando o que é injusto
para que o que faltou a mim
seja abundante a todes.

 

terça-feira, 22 de março de 2022

alento

abuelos sussurraram
para dores que o verbo 
não alcança
há as plantas
a medicina do abraço
a música que faz bailar  
e vibrar novamente
corações ancestros

e é a magia do contato
encontros nas sinuosidades
do caminho
que faz-se matéria do espírito
e espírito da matéria
o desejo de receber
junto ao desejo de repartir
dar-se ao universo
e ganhar a si em troca

dispersão de sementes pelo vento
vuela vuela semilla
canción de estrella rosa del camino rojo
espírito do alento
alísio
insular
ventos da cordillera a amazônia
levam o colibri e o kanarô
pássaro da saudade
Yawanawa

vuela madre
gracias por todo
e quando honro minha vida
honro a ti
ao seguir 
cada vez mais livre
mais feliz
a bagagem torna-se mais leve
mais lúdica
musical
después del llanto, el canto
canto a meu coração 
e voo. 

quinta-feira, 10 de fevereiro de 2022

périplo

(27.01.2022)

indo e falhando em ir
para chegar afinal onde deveria
estar
Ítaca território acima
morro abaixo desaguam os traumas
indo e voltando transbordando de margens
primeiras estórias, terceiras viagens

indo e voltando e indo de novo
sempre em trânsito
meus calcanhares não são de Aquiles
são de Hermes
abro caminho com carinho ou pedra
crio no escuro ou costuro no claro
versos
veleidades
vontades

"corazón que es lo único que tengo"
venho e saio quando quero ou como posso
forjo travessias
nelas manifesta-se o real
como gatomia, está quente, está quente
está chegando o que se desvela
Alethéia que abraço com a força do querer
viver. 

al-Kali-minha

sagrada rebeldia
sigo insubmissa
arquiteta do meu próprio destino
não mais de minha própria ruína

com quantas Marias se faz uma Kali
com quantas Kalis se faz uma Maria
alquimista do deserto
ó profetisa 
no seu banho de cozimento lento
o banho Maria
aqueço meus ossos cansados 
dando origem a novo ser 

ó forças das deidades telúricas
ctônicas
ancorai meu propósito nesta terra
amar ao próximo 
e guerrear contra o injusto
contra o que impede
a todes a vida próspera
cabeças dos inimigos sob os pés
da subterrânea
morte terrenal, aurora espiritual
onde estarão também
as sementes
amanhecer vindouro
já estamos vencendo

"qu'un sang impur 
abreuve nos sillons"
da revolução francesa 
o que mais me agrada 
é esta parte
lavrar o campo da retomada
com o sangue simbólico da vitória
de nossos ancestrais 
fertilizar e cultivar até no futuro 
fome ser mito de branco

"sabia, meu neto, que houve épocas
em que se acreditava que a comida 
fruto do solo sagrado
não dava para todos"
e ele responderá "nada a ver
esse Malthus, hein, abuela"
e direi "sim
mas sempre, sempre
houve quem fizesse e acreditasse
diferente
firmei com estes
e vencemos".

quarta-feira, 9 de fevereiro de 2022

rebrota

07.02.2022
para  Clar(A), Rita Muniz e Brenda

nesta caixa de Pandora que é a vida
aferrei-me à esperança 
última que morre e base
de tudo que se vive 
Pandora, aprendi com minha mãe:
todos os dons
Teodoro: dons de Deus
seria inodoro o sem dons?
perdas olfativas da covid
tudo rebrotou

despeço-me deste território
sagrado
entrego meus dons
a serviço 
de todes
da humanidade
ventos
céu
terra
mar
meus dons a serviço

a brisa do linalol
presente na lavanda
manjericão
cannabis
me abraça
me afaga
me acolhe
tal como os corações
com os quais partilhei
meu butim
meus óleos
meu toque
minha presença

nunca é tarde
para renascer

meu coração sempre quis morada definitiva
fosse alguém
ou uma casa
lar físico para enraizar

tenho descoberto
os prazeres e a beleza
da itinerância
do trânsito
alado, mercurial
sou caminhante 
estelar
semeio a magia da vida
planto o que creio
por vezes nem estarei lá
para ver brotar
planto o que creio
na fé de que alguém 
colherá 
(como os milhos de Seu Jamil)

rio deságua no mar
maré é pêndulo lunar
fluxo refluxo
Pataxó, o som das ondas
ao quebrar
quero ouvi-las quebrar 
não quero ser eu a quebrar
quero agora sanar

planto o que creio
colho o que não plantei
e o que plantei também
semeio versos
plantarei amor a vida inteira
de uma forma ou de outra
alguém colherá
e que seja fértil e farta
a colheita
e o semear.

terça-feira, 4 de janeiro de 2022

seis

ele foi o raio que partiu minha árvore
inebriada de amor romântico messiânico
quis ver nisso bênção de Iansã
porém não foi raio de justiça
foi raio que arrebentou
seiva, floema, xilema
meus vasos internos
o raiu partiu minha árvore
sou de Oxóssi
ele também
a seta deveria ter sido
lançada com mais cuidado

dei-lhe um ofã preateado
ao final de tudo 
até isso foi razão para humilhação
seis 
com três seria nove
nosso mês de nascença 
cria do cerrado,
por que quase mataste minhas raízes?

em março completo um ano
de fim
este sem eterno retorno
é corte da cabeça de hidra de lerna:
cauterizei
na força da brasa 
de um telefonema na segunda clínica
uma ligação para desligar 
o que havia perdurado por demais 

a personalidade limítrofe
reverberou com tanta falta minha
quis curar, permanecer 
quis mergulhar na compulsão a repetição
se o salvasse
seria como salvar a minha mãe 
e a mim mesma 

eu salvei a mim mesma 
todos os dias dos últimos 27 anos
até nos que tentei desistir
eu permaneci 
eis-me aqui 
meu arco e seta apontam não para ele
só desejo o melhor
apontam para inimigo algum
minha seta aponta somente para frente
nas bênçãos das matas e cachoeiras 
minha suprema vitória é minha vida e saúde
e a última estação, esperança
trem este que pego todo dia.