sexta-feira, 4 de abril de 2014

O sapo e o escorpião

Em alguma época, em algum lugar, houve um escorpião que precisava atravessar um lago. A fábula original não diz o porquê. Então digo que meu escorpião precisava atravessar o lago porque havia visto uma aranha que lhe parecera especialmente apetitosa.

Porém, o escorpião não nadava. E próximo a ele, um sapo coaxava tranquilamente, super zen. Talvez o sapo estivesse recitando silenciosamente o Prajnaparamita. Ou não. De qualquer forma, o escorpião não se interessava por budismo. Era demasiado hedonista. E interrompeu a meditação do sapo:

- Olá, amigo sapo! - disse, num tom falsamente amistoso.
- Olá? - disse o sapo, cauteloso, pensando "Como assim 'amigo', cara, você nunca falou comigo antes, embora coexistamos nesse ecossistema há tempos", e ainda assim, tentando ser gentil, e não manifestar sua desconfiança.
- Desculpe-me por interromper sua meditação, om, mas eu preciso atravessar esse lago, e minha natureza não me permite nadar. Eu gostaria de te pedir para me levar.
- Por que você precisa atravessar o lago?
- Porque minha amada está do outro lado, me esperando - mentiu o escorpião, ciente de que o sapo não gostaria da ideia de levá-lo apenas para que o escorpião pudesse desfrutar de uma aranha, que, afinal, era tão viva quanto eles.
- Sério? Essa é uma boa razão, mas por que você não contorna o lago? - respondeu o sapo, compassivo.
- Oh, eu contornaria! Como você sabe, eu posso passar muito tempo sem me alimentar, e faria esse trajeto com prazer, mas ela - ah, as fêmeas! - tem pressa.
- A paciência é uma virtude, escorpião. Mas nesse caso, que há de se fazer? Tenho de ser compreensivo com o processo dos outros, também. Atravessarei o lago contigo.
- Muito obrigada, meu amigo sapo! O que você quer em troca? - disse o escorpião, satisfeito.
- Nada. Não precisa me dar nada. Vamos lá. - concluiu o sapo, oferecendo suas costas ao escorpião.

O escorpião subiu nas costas do sapo, e o sapo entrou no lago. Durante a travessia, o sapo contou que na verdade não pretendia entrar no lago por um tempo, contudo, havia feito essa concessão pelo escorpião. O escorpião simulou gratidão, mas no fundo, não entendeu o que levava um ser a fazer algo que não queria por outro ser.

No meio da travessia, o escorpião picou o sapo.
- Por que você fez isso?! - disse o sapo - Eu lhe ofereci minhas costas de bom grado, e agora ambos morreremos!
- É a minha natureza - disse o escorpião.
- Não - disse o sapo, muito sério e resoluto, com o que lhe restava de vida -, não é a sua natureza. A sua natureza era não nadar. Isso sim era sua fisiologia, algo que você não podia mudar. Mas a natureza do seu caráter, sua essência? "A existência precede a essência", diz Sartre. Era responsabilidade sua administrar sua natureza e sua essência para se tornarem o que você quisesse ser. Você acha que eu queria entrar no lago para te trazer? Não, mas eu escolhi trazer, e entre a preguiça e a vontade de te ajudar, cedi a segunda. Se você se envenenou, e me envenenou, a responsabilidade é unicamente sua. Sinto muito pela minha vida e pela sua, porque você foi consumido pela sua auto-indulgência e jogou no lixo uma chance de se tornar melhor. - disse o sapo. E morreu.

O escorpião entendeu imediatamente o que o sapo queria dizer. E sentiu-se tomado pela tristeza por ter destruído tantas coisas antes de aprender algo tão simples. Morreu também.


"1) Ando pela rua
Há um buraco fundo na calçada
Eu caio
Estou perdido... sem esperança.
Não é culpa minha.
Levo uma eternidade para encontrar a saída.

2) Ando pela mesma rua.
Há um buraco fundo na calçada
Mas finjo não vê-lo.
Caio nele de novo.
Não posso acreditar que estou no mesmo lugar.
Mas não é culpa minha.
Ainda assim levo um tempão para sair.

3) Ando pela mesma rua.
Há um buraco fundo na calçada
Vejo que ele ali está
Ainda assim caio... é um hábito.
Meus olhos se abrem
Sei onde estou
É minha culpa.
Saio imediatamente.

4) Ando pela mesma rua
Há um buraco fundo na calçada
Dou a volta.

5) Ando por outra rua."
(O Livro Tibetano do Viver e do Morrer)

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