quinta-feira, 24 de abril de 2014

Agudamente

- Sabe - ela disse, sorvendo um pouco de café -, eu não diria que "as pessoas" são boas nem que "as pessoas" ruins. Porque isso é muito vago. Mas eu diria que as pessoas se esforçam.

- Esforçam em quê? - ele disse, erguendo uma sobrancelha.

- Em sobreviver. Elas tentam, sabem, cada uma à sua maneira. - ela explicou, encolhendo os ombros.

- E ferem umas as outras no processo.

- Certamente que sim, mas não estou dizendo que isso justifique. Não acho que sobreviver se torne desculpa pra tatear às cegas sem se importar com as consequências dos seus atos. Justamente, viver demanda responsabilidade. Sobreviver demanda consciência.

- Eu concordo contigo - disse ele, gentil -, mas me surpreende que você gaste tanto tempo pensando em algo que pra maior parte das pessoas é tão automático quanto respirar.

- Como assim? - intrigou-se ela.

- Sobreviver... você realmente acha que a maior parte das pessoas filosofa tanto assim sobre isso?

- Sinceramente, eu acho - ela insistiu, parecendo um pouco agitada -. Não que elas necessariamente tenham consciência disso. Não sei se podemos chamar de "filosofar" em todos os casos. Mas acho que todo mundo tem uma pequena, ou enorme, angústia, dúvida, inquietação, dor, etc. etc., que adquire dimensões e formatos singulares pra cada um. Tolstói já dizia que "se existem tantas cabeças quanto são as formas de pensarem, há de haver tantos tipos de amor quanto são os corações". Acho que isso também vale para o fato de que cada um encontra uma forma de seguir. Pra alguns, filosofar de uma maneira deliberada sobre a vida poderia virar desespero, mas pode simplesmente virar alguma coisa muito preciosa que a gente tenta esconder por ser íntima demais.

- Como a arte? - ele sorriu.

- Como qualquer coisa, qualquer coisa que sirva. Contanto que não fira os outros.

- Sabe - o sorriso dele alargou-se -, eu gosto do seu jeito agudo de sentir as coisas.

- Então você já gosta de uma parte enorme de mim - ela disse, rindo, parecendo mais leve.

- Gosto, sim.

- Também gosto de ti. Talvez agudamente. - ela alertou.

- Tudo bem. Eu aceito.

- Obrigada.

- Não agradeça. Só chega mais perto.

- Chego.

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