sábado, 24 de maio de 2014

Beija-flor

Um beija-flor uma vez se fixou por uma flor que não dava néctar. E ele fixou-se. Fosse humano, chamariam de paixão. Fosse budista, diriam que era apego. Diriam que ele queria tirar leite de pedra. Ou néctar da flor inadequada.

O beija-flor percebia que aquela flor não dava néctar. No início, recusava-se a ver. Agora, não era possível mais não enxegar. Ele via. E, vez e outra, vezenquando, tentava buscar néctar nas flores que poderiam efetivamente nutri-lo. Contudo, nutriam só o corpo. E de forma parcial, incompleta. O beija-flor ficava triste, triste. Sentia que não lhe bastava estar com a barriga cheia. Parecia até que ela pesava demais cheia.

O beija-flor rondava a flor que não dava néctar diariamente. E não entendia porque havia ficado tão fixado justamente na flor que não dava néctar. Na flor que, a despeito de todo seu esforço e insistência, provavelmente jamais daria néctar por sua própria natureza. Não era culpa da flor, o beija-flor bem sabia. Mas doía. E ele, tão fixado. Tão fixado em algo que não poderia nutri-lo, e não seria a nutrição uma parte fundamental daquele tipo de relação?

A flor era demasiadamente bonita. Imponente, altiva. Possuía um belo degradê de cores, entre azul ultramar, índigo e violeta. Era realmente muito bonita. Talvez por isso o beija-flor gostasse tanto dela. E isso não mudava, mesmo assim, o fato que que a flor era inalcançável pra ele. E que existiam flores quase tão bonitas que poderiam nutri-lo. E ele não conseguia nutrir-se delas. Embora elas parecessem apreciar o beija-flor. Poderia ser mutualismo, mas não foi. Poderia ser protocooperação, mas não foi. Entre o beija-flor e as outras flores, foi comensalismo que ele interrompeu antes de virar amensalismo. E o amor deveria ser protocooperação, mais que mutualismo.

O beija-flor resolveu dedicar-se só a sua flor índigo-ultramar-violeta. E ela, ora constrangida, ora lisonjeada, ora impaciente, o tolerava. Sem porém nutri-lo. E o beija-flor foi definhando, definhando. O beija-flor de voz aguda e doce começou a cantar canções tristes sobre as flores. O beija-flor foi ficando mais cinza e mais introspectivo.

Um dia, um homem imediatista viu a flor índigo-ultramar-violeta e a colheu para dar a sua amada. A flor morreu 3 dias depois, e a amada a colocou entre as páginas de um livro para que secasse. Quando terminou o relacionamento, a amada jogou fora o livro e a flor.

O beija-flor nunca mais viu a flor. E começou a cantar sons sobre o amor que ia além de ver. O amor pra dentro, que insistia em não morrer. E resolveu cantar sons mais alegres e deixar-se tomar pelo afeto rico da vida. E o beija-flor cantou até o último dia de sua vida a beleza das coisas que eram, ainda que ele não pudesse tê-las. E a beleza das coisas permaneceu mesmo depois que ele partiu. E o beija-flor cantou na mansão do Eterno.

Um comentário:

  1. "You'll have to leave me now, I know.
    But I'll see you in the sky above,
    in the tall grass,
    in the ones I love."

    Bob Dylan

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