quinta-feira, 1 de maio de 2014

abstrações

escrevo
exaustivamente
incansavelmente
sobre o que ainda não aprendi a superar

e escrevo
verborrágica, desesperada
ora desnuda, ora tácita
"arrebento a alma no papel"
ou na tela
para depois passar os dedos de leve nos cortes
e constatar que parecem sangrar menos após o exercício
de expurgo

escrevo
para expiar
ora escrevo para celebrar a vida
ora escrevo porque não a suporto
escrevo sobre o que amo
e sobre como queria parar de amar
ou sobre a diferença entre amor
e apego

escrevo
porque sinto muito
e pra não pirar
nem repetir para os meus amigos as mesmas coisas
de sempre
escrevo, escrevo

as palavras sempre me foram mais familiares
acessíveis
e terapêuticas
do que a vida

escrevo pra não morrer
e pra viver
parece redundante
ou hiperbólico
mas a um exame mais atento
há um bocado de literalidade aí
e de coexistência
alternância
de sentimentos

escrevo
e bendita seja a literatura
prosa e poesia
minha alfabetização precoce
e minha mãe intelectual
pois sei que a escrita
nunca me faltará
nunca me falhará
caio f. dizia que escrever
era como meter o dedo na goela para vomitar
e que tinha de sangrar
a-bun-dan-te-men-te
cada um que escreva como queira
mas eu também escrevo assim

sagradas as palavras que transmutam minhas angústias
em algo mais fácil de lidar
mais claro
mais belo
ou talvez
só um pouco mais externo

minha obra é repetitiva
na medida em que são repetitivas minhas angústias
minha obra é criativa
na medida em que preciso sê-lo para encontrar estratégias
minha obra é só minha
na medida que amei o que produzia antes mesmo de aprender a amar a mim.

Um comentário:

  1. Às vezes fico pensando o que seria de mim - de nós - se não existissem palavras, papel, literatura, livros feito botes salva-vidas, escritores com quem podemos dialogar, a quem nos confessamos, de quem pedimos colo, mesmo que eles já não vivam mais. Gostei muito desse poema.

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