sexta-feira, 31 de maio de 2013

I

Quando Stella nasceu, veio um anjo, um safado de um querubim, e disse: "Vai, Stella! Ser gauche na vida" . Não, brincadeira; não houve anjo algum. Não que saibamos, ao menos.

Stella era órfã. A única coisa que sabia sobre seus pais era que estavam mortos. Stella vivia numa cidadezinha provinciana, chamada X. Seus primeiros 13 anos de vida tinham sido, na melhor das hipóteses, chatos. Ela era criada por Oswald, seu tio, irmão de seu pai.

Stella perguntou diversas vezes, como qualquer um faria, sobre seus pais. Oswald apenas balançava a cabeça e dizia "A ignorância é uma bênção", num tom que pretendia ser sábio, mas para Stella soava apenas prepotente e pouco satisfatório.
- Orwell discordaria, tio. - retrucava Stella.
- Que Orwell sabia da vida, menina? Passou por tanta coisa só pra expiar sua culpa classe média.
- Você está sendo simplista.
- Com certeza, mas você não me vê lavando pratos num hotel imundo ou recebendo uma miséria pra colher lúpulo. Estou aqui, lindo, tomando chá mate e comendo pipoca.
- Você nunca vai falar sobre os meus pais, não é?
- Sei lá. Não é simples desse jeito. Tome um chá. - disse Oswald, como que para encerrar o papo.
- Amarela os dentes. - disse Stella.
- Ué, cigarro também.
- Mas eu não fumo, eu tenho 13 anos, esqueceu?
- Ah, é verdade. Bem, é uma questão de tempo, eu acho. Talvez faça parte do processo de amadurecimento começar a entender porque as pessoas fazem coisas que sabem que fazem mal a elas. - afirmou Oswald, pensativo.
- Você está falando sobre o quê, agora? - Stella intrigou-se, erguendo uma sobrancelha.
- Sobre coisas que espero que você nunca entenda. - declarou Oswald, abrindo seu maço de cigarros.
- Você realmente faz um belo trabalho em me inspirar para a vida, hein, cara. - suspirou Stella.
- Estou dizendo que espero que você não sofra, sua ingratinha. Ou sofra, porque a dor pode ser um terreno fértil para a solidariedade, mas não muito.
- E como se diferencia isso?
- Acho que seria algo como um caminho do meio entre querer abraçar as pessoas mais do que gritar que elas estragaram sua vida. - teorizou Oswald, rindo.
- Acho é que você deveria procurar uma terapia.
- Prefiro investir em você. Dê o fora, quero fumar. Por que não vai brincar com seus amigos?
- Porque eles meio que não existem. - disse Stella, desviando o olhar.
- Duvido. Você é uma garota inteligente e engraçada, todo mundo deve querer ser seu amigo na escola.
- Então... não. - explicou ela, frustrada.
- Talvez as crianças da sua idade tenham inveja de você, porque são medíocres? - disse Oswald, gentilmente.
- Duvido bastante. E mesmo que fosse isso, não seria grande consolo. Aliás, consolo algum. Não é como se eu me esforçasse para ser inteligente, eu nem estudo. Mas eu me esforço pra fazer amigos, e não adianta de porra nenhuma.
- Ligue o foda-se para essa gente, meu bem. - sugeriu Oswald, oferecendo um brinde com o chá.
- Falou o cara que fuma 60 cigarros por dia e só conversa comigo e com o gato.
- Nada a ver. Sou educado com todo o mundo.
- Isso é verdade.
- Só não quero as pessoas perto demais.
- Por quê?
- Talvez um dia eu te diga.
- Opa, acho que estamos obtendo algum progresso aqui, senhoras e senhores? - disse Stella, olhando para Marlboro, o grande gato gordo e preguiçoso.
- Vou te dar um dinheiro, sua amaldiçoada. Vá pegar um sol. Quero fumar e ouvir Elliott Smith.
- Eu gosto de Elliott Smith! - protestou Stella.
- Mas não devia. Você é nova demais. - Oswald respondeu, severo.
- Sabe, tenho a teoria de que a vida não respeita limites de idade. Como para me tirar meus pais.
- Stella, Stellinha... por favor, não fique triste. Eu posso ser amargo e tabagista, mas você tem a mim. - Oswald estendeu os braços para ela.
- Eu sei. Obrigada. - fungou Stella, lhe dando um abraço breve e apertado.

***

Stella de fato não tinha muitos amigos na escola. Aquilo a magoava, contudo, ela não conhecia outra realidade.

Oswald era um homem perspicaz, de cerca de 40 anos. Era magro e muito bonito, embora não soubesse disso. Não era muito assediado, porque era demasiadamente introspectivo. Oswald era jornalista. Viajava às vezes a trabalho, todavia, dizia que seria um sábio mesmo que nunca saísse da cidadezinha de X.

- Tipo Kant - ele dizia.
- Seu imperativo categórico supremo seria "Fumarás como se não houvesse amanhã, brincarás com o gato gordo e afastarás as mulheres que tentarem se aproximar"? - retrucava Stella.
- Eu não faço isso. - disse Oswald, franzindo o cenho.
- Nem precisa. Nem as mais stalkers tentariam algo com alguém tão fechado. Tio Oswald, você já amou alguém?
- Não. Não é da sua conta. - suspirou - Já.
- E como foi?
- Digamos que é bom sentir borboletas no estômago, exceto quando elas se tornam mariposas desesperadas. - disse ele, acendendo um cigarro.
- Falou e não disse nada.
- Estou te dando pérolas aqui, filha.
- Agora tá citando Al Pacino. Cê tá que tá hoje, hein? Mas até que você tem algo de Coronel Slade, sabe? - disse Stella, pensativa.
- Eu não amo "as mulheres", isso é muito abstrato, é metade da humanidade, é muita gente pra amar só por causa de arbitrariedades como suposta delicadeza e cabelos longos.
- De fato, somos legião, porque somos muitas. Mas então você é desses que "gosta de gente"?
- Eu não gosto de gente. - riu Oswald.
- Mas você gostou de alguém.
- Sim, Stella, eu gostei. Mais de uma, até. - admitiu Oswald, contrafeito.
- E deu certo?
- Tanto quanto podia dar. - disse Oswald, tragando profundamente o cigarro.
- Você foi feliz?
- Fui.
- Então por que você parece tão triste?
- Porque as ausências pesam.
- Quais?
- Todas. Às vezes separadas, às vezes todas juntas de uma vez. Sinto saudades de algumas pessoas, sinto saudade de mim. Sinto saudade de ter altas expectativas pro futuro - Oswald olhava para um ponto inexato.
- Você sente saudade de alguém mais do que das outras pessoas?
- Sim, Stella. Por quê?
- Porque às vezes eu vejo você rir sozinho e depois parar de repente e apertar os olhos. Às vezes você cobre o rosto. Às vezes fuma como se a fumaça pudesse te preencher. Mas algo te dói, isso é claro.
- Você percebe? - disse Oswald, subitamente se sentindo exausto.
- Sim.
- Achei que eu fingia sim.
- Pros outros, talvez. Por que você não se permite sentir a dor em sua extensão real? Por que você a esconde?
- Porque não suportaria.
- Dói tanto assim? - disse Stella, compassiva.
- Você não faz ideia.
- Desculpa por tocar no assunto. Desculpa mesmo.
- Você não fez por mal. Mas agora, por favor, me deixe sozinho. - disse Oswald, dando-lhe as costas.

O som tocava Elliott Smith.
"It's a hell of a role, if you can keep it alive..."


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