terça-feira, 20 de abril de 2021

vermelho-romã

você parou de comer porque o amava
em certa medida, eu também
para ser mais amada
ou para desaparecer
o amor no patriarcado
soa como tragédia
dolorida
ainda que mil vezes encenada 

e nós amamos as gregas
e Perséfone, e Psique
e as ninfas, e os átridas
amar mulheres
ainda é ser apátrida
nesta terra que não nos cabe
jogo minhas tranças a ti
pois me permitiu não jogá-las
quando eu não quisesse
amor floresce
na quietude das madrugadas 

este solo que é nosso
é nosso não porque a desejo somente para mim
é nosso porque neste habitar
neste espaço-tempo afetivo, cálido lugar
o que construímos é inimitável
bordado com a delicadeza
de mãos femininas
que escrevem poesia
e artigos
e odeiam hospícios
e conspiram
juntas 

cuidarei de meus traumas
lavarei minhas marcas
para que o que saia de sua boca
eu sempre admire
e jamais silencie
que você possa falar e calar
gritar e chorar e inclusive me deixar
a porta sempre está aberta
jamais será um cárcere
jamais pedirei mais
do que o que pode oferecer
dentro dos seus limites 

o possível é um caminho que vale a pena desbravar
nesta jornada permeada
pelo incognoscível
venusianas nos olhamos
talvez um dia a poucos centímetros
dos quais cada milímetro de poesia
e conexão
adoçou meus dias
e ajudou a desejar
que outros virão. 

terça-feira, 13 de abril de 2021

átropos

exorcizar as saudades
costurar retalhos
alguns continuarão desfiados
alguns carregarei rasgados 

romper a trama
desfazer o tecido
acolher os fragmentos
e remar com eles
Estige acima
moeda debaixo da língua
entregar a Caronte
e pedir para voltar
para a terceira margem do rio 

entre mistério e insondável
meu amado corpo etéreo, por favor
seja um corpo vivo
não um corpo coberto por lençol
o poder que não tenho frente a isso
é a angústia que consome meus dias

talvez perguntar a Caronte
se a terceira margem do rio
é, afinal, um bom destino
no conto de Guimarães Rosa
um filho propõe assumir na canoa
o lugar do pai lunático
quando digo lunático, não digo insano
digo com a mente tocada pela lua
e para sempre marcada
e talvez eu já tenha assumido
em demasia
papéis que não eram meus
papéis que não eram cabíveis
mas para os quais a vida me empurrou 

sinto-me drenada
cuidei de muita gente
poucas cuidaram de mim
e agora não quero cuidar de ninguém
nem de quem merece
não quero me doar
não quero perdoar
não quero compreender
não quero acolher
não quero ser prestativa
compassiva
útil
servil 

"and I'll walk away in spite of you"

rio acima, rio abaixo
rio adentro, margens transpostas
se meu coração fosse um rio
existiram muitas Vales no caminho
e em meio a tanta lama
a flor de lótus eventualmente
cansa-se de desabrochar
mediante tanto sofrimento
e florescer demanda energia
que uma planta esgotada
não tem
a única planta que posso ser agora
é uma cria do cerrado
raízes 3 vezes maiores que a superfície
3 vezes maiores do que o que se vê
na busca de águas profundas
que talvez não estejam contaminadas
intoxicadas de mágoa

contudo, a inteligência botânica
que permite às raízes cerratenses
encontrar águas subterrâneas
é para stress hídrico condizente
com o mundo natural
o cerrado não está preparado para incêndios
criminosos
o fogo é bom para a canela de ema
a lama, para as árvores do mangue
no lugar errado
tudo pode arruinar 

para onde Caronte
o destino
vai levar a canoa
não sei
o que sei é que a única canoa que me pertence
é a minha
o único caminho que me pertence
é o meu
entre reinos, remos e ofã
quero a paz que desejei a outros
para mim.

sábado, 26 de dezembro de 2020

yingwaz

meu sol-estrela
explosão que aquece
acalenta e clareia 
meus ossos cansados
de uma vida inteira

meu lírio violeta
amor dourado
em meio a tanta escuridão
fazem-se presentes
pirilampos
sobreviventes dos agrotóxicos 
resilientes as marés
de azar 

repousar nos teus braços 
é como me desfazer
em lágrimas e amor 
oraieieo

posso descansar 
fechar meus olhos e confiar
que ciente da minha cartografia
de dores 
você pisa com tanto cuidado 
em meus caminhos esburacados

o sal que você usa 
é para temperar nossa comida
diferentemente de tantos 
você não esfrega sal nas minhas feridas
você aplica reiki nelas 
e eu ouso crer
que talvez elas possam
fechar 

quero cuidar das suas 
quero ajudar a sanar
e a semear esperança 
pois em plena escuridão
me achaste

que eu saiba iluminar também
teus dias difíceis 
quando você, meu sol, estiver cansade 
eu serei uma vela 
pequena e firme 
como somos nós
através das noites. 

terça-feira, 15 de dezembro de 2020

acerto de contas

 (16.11.2020)

quanto vale uma vida?
um é o valor 
na ponta duma faca
quanto vale uma vida 
na mão de quem não se importa?

quanto vale 
acertar as contas
com um soco na cara 
acertar as contas
com os débitos 
e faltas

acertar as contas 
com o que não pode ser pago
não se pode desfazer
cada ato já feito
essa é a tragédia 
essa é a beleza
já feito, não volta mais 

duram instantes um bater de asas 
de borboleta
duram o choque da gota de orvalho
em sua queda livre
sobre a folha
duram 
uma piscada 

construímos nossa identidade
numa série de momentos
de brevidade
que passe o que tem de passar
que finde o que tem de findar 

acerto de contas 
às vezes a única paz possível
é aceitar os pedidos de desculpa
que jamais te farão. 

segunda-feira, 2 de novembro de 2020

bipoca

tem um pouco de pipoca no chão
não varro há dias
vivi, tenho vivido
dias sombrios
 
como pipoca com frequência
me lembra minha mãe
cada grão de milho preenche
humilde
outro buraco de ausência
 
é o calor que estoura o milho
ou nossas expectativas?
amar em voo em voo livre
é uma dádiva
 
eu que tanto amei
a sombra e o abismo alheio
sinto-me agraciada por amar
quem compreenda tantas cicatrizes
invisíveis
guardadas por trás do meu sorriso cansado
gravadas a ferro na memória
indeléveis parecem
busco, porém
queimar a dor no fogo do amor
 
aqueço o caldeirão
aprecio sua beleza
a natureza foi generosa
ao colocar essa mulher sob meus olhos
seus cabelos ao alcance do meu toque
seu coração perto do meu
balançando de esperança
de um mundo melhor
que nascerá com sementes e molotovs
e de dias melhores nossos
estes nascem de nossas mãos
sua coragem aquece e incendeia
meus e nossos amanhãs.

sábado, 6 de junho de 2020

sol da manhã

(06.02.2020)
para Teresa 

escrevo por ânsia de sobrevivência
não à toa, pouco escrevo
quando estou bem
o amor, porém
inspirou-me
por anos

não quero escrever sobre decepção
não quero escrever sobre meu coração
partido
ao fragmentar-se a confiança
em alguém que tão bem conhecia
meu inventário de cicatrizes

coragem vem de cor
coração
não sei a etimologia de covardia
mas conheço o gosto adstringente
como fruta verde
difícil de engolir

coragem vem de cor
coração
amar é um ato de coragem
e necessariamente implica responsabilidade

solos maltratados por agrotóxicos
e mau manejo
podem ser recuperados
contudo, desintoxicá-los
demanda tempo
tempo, este tecido de nossas vidas
que o capitalismo torna recurso
escasso

na agroecologia
não falamos em plantas como pragas
chamamos de indicadoras
pois indicam desequilíbrios
a serem corrigidos

farei da decepção e da dor
minhas indicadoras
de que algo acabou
e não agredirei meu solo
com arados desnecessários

o amor semeado
segue sendo meu
desta medicina estou sempre cheia
e por isso não seco

plantarei amor a vida inteira
e receberei a colheita
quando a natureza deixar
jamais irei maldizê-la

os frutos que virão, nunca se sabe
cuidar das sementes
e solo
é a parte
que me cabe

os milhos crioulos que plantei em novembro
não pude ir colher
alguém colheu por mim
não sei quem foi
agradeço
agradeço ao Seu  Jamil
e à vida
que tem me dado tanto.

segunda-feira, 1 de junho de 2020

sarça ardente II

há luz no deserto
em que vagam peregrinos
há luz nos olhos
queimados de sol
iluminados de destino

bordando a delicada
tessitura da vida
tateio por algo
era a ti que eu buscava
entre becos e barricadas

há luz nesta casa
ensolarada
em que o invisível é nomeado
é preciso enxergar
para curar

há luz dentro e fora
transborda pelos teus olhos
há deserto, meu beduíno da memória
entre Diadorim e neblina
há amor e travessia

entre noites intermináveis
em que o mero existir
era pura agonia
sintonizamo-nos na dor
a sarjeta nos aproximou

após a dor, o amor
após a dor, a travessia
há amor e travessia
morrer não cabe mais.