sábado, 31 de maio de 2014

seguir em paz

na transitoriedade
impermanente
que cabia
no possível
eu escolhi você
e você não me quis;
eu quis insisitir
em segurar sua mão
e você foi firme
em não seguir
e eu segui

pelas alamedas estreladas
com a luz de meus próprios bem-quereres
que não você.

eu tenho a poesia
eu tenho o amor
eu tenho a luz
eu tenho a fé
eu tenho a compaixão
eu tenho a caminhada
embora eu não tenha você.

e eu não pude
mudar o que era
pois tudo é
como tem de ser
e mesmo agora
eu não posso mudar
o que não sei como
mudar

o que eu posso é ser
ser livre
ser luz
criar
meu universo
multicolorido
de bem-aventurança
como meio libriana
eu gosto do que é lindo
como meio canceriana
eu gosto de abraços
e como eu mesma
eu gosto da minha paz
e eu me basto no calor da minha senda
e eu faço bichinhos com as mãos
na frente de uma lanterna
lançando luz
para brincar
com as sombras das ausências.

sábado, 24 de maio de 2014

Beija-flor

Um beija-flor uma vez se fixou por uma flor que não dava néctar. E ele fixou-se. Fosse humano, chamariam de paixão. Fosse budista, diriam que era apego. Diriam que ele queria tirar leite de pedra. Ou néctar da flor inadequada.

O beija-flor percebia que aquela flor não dava néctar. No início, recusava-se a ver. Agora, não era possível mais não enxegar. Ele via. E, vez e outra, vezenquando, tentava buscar néctar nas flores que poderiam efetivamente nutri-lo. Contudo, nutriam só o corpo. E de forma parcial, incompleta. O beija-flor ficava triste, triste. Sentia que não lhe bastava estar com a barriga cheia. Parecia até que ela pesava demais cheia.

O beija-flor rondava a flor que não dava néctar diariamente. E não entendia porque havia ficado tão fixado justamente na flor que não dava néctar. Na flor que, a despeito de todo seu esforço e insistência, provavelmente jamais daria néctar por sua própria natureza. Não era culpa da flor, o beija-flor bem sabia. Mas doía. E ele, tão fixado. Tão fixado em algo que não poderia nutri-lo, e não seria a nutrição uma parte fundamental daquele tipo de relação?

A flor era demasiadamente bonita. Imponente, altiva. Possuía um belo degradê de cores, entre azul ultramar, índigo e violeta. Era realmente muito bonita. Talvez por isso o beija-flor gostasse tanto dela. E isso não mudava, mesmo assim, o fato que que a flor era inalcançável pra ele. E que existiam flores quase tão bonitas que poderiam nutri-lo. E ele não conseguia nutrir-se delas. Embora elas parecessem apreciar o beija-flor. Poderia ser mutualismo, mas não foi. Poderia ser protocooperação, mas não foi. Entre o beija-flor e as outras flores, foi comensalismo que ele interrompeu antes de virar amensalismo. E o amor deveria ser protocooperação, mais que mutualismo.

O beija-flor resolveu dedicar-se só a sua flor índigo-ultramar-violeta. E ela, ora constrangida, ora lisonjeada, ora impaciente, o tolerava. Sem porém nutri-lo. E o beija-flor foi definhando, definhando. O beija-flor de voz aguda e doce começou a cantar canções tristes sobre as flores. O beija-flor foi ficando mais cinza e mais introspectivo.

Um dia, um homem imediatista viu a flor índigo-ultramar-violeta e a colheu para dar a sua amada. A flor morreu 3 dias depois, e a amada a colocou entre as páginas de um livro para que secasse. Quando terminou o relacionamento, a amada jogou fora o livro e a flor.

O beija-flor nunca mais viu a flor. E começou a cantar sons sobre o amor que ia além de ver. O amor pra dentro, que insistia em não morrer. E resolveu cantar sons mais alegres e deixar-se tomar pelo afeto rico da vida. E o beija-flor cantou até o último dia de sua vida a beleza das coisas que eram, ainda que ele não pudesse tê-las. E a beleza das coisas permaneceu mesmo depois que ele partiu. E o beija-flor cantou na mansão do Eterno.

sexta-feira, 23 de maio de 2014

caleidoscópio

eu queria te dar
todas as coisas bonitas do mundo
eu queria ter dinheiro pra te levar
por vales montanhas cordilheiras
centros de luz trilhas cachoeiras
cafés museus monumentos
queria te dar
todos os sons bonitos do mundo
a cadência o crescendo a melodia
a harmonia
queria te dar
todas as coisas bonitas do mundo
queria te dar o sol a lua as estrelas
queria ser luz e teu universo alumiar
eu queria te dar todas as coisas bonitas
do mundo deste plano
do astral
e eu queria
que você achasse o meu coração
a coisa mais bonita de todas
como eu achei o seu
como eu achei o seu.

quarta-feira, 21 de maio de 2014

eu quero me curar do apego

você é o tchau que vem cedo demais
você é o tchau que veio cedo demais
ciclicamente
e eu não sei lidar
vez após outra
ainda não aprendi a lidar

eu quero
me curar do apego
eu quero
me curar
do apego
eu disse
ao chá
ao sacramento
e doeu tanto
encarar
mas eu ainda
não aprendi
a lidar.

sábado, 17 de maio de 2014

sonho

ele é como um sonho
tão bonito
e tão denso
quanto leve
e tão fúnebre
e tão eterno
quanto célere

breve, breve
transitório
e no entanto
permanente?
seria ilusório
ou seria imanente?

um sonho bom
daqueles em que tudo
diz muito

um sonho tão intenso
em beleza
quanto em momentos terríveis
e no entanto
quando  o despertador tocou
sobressaltei-me
senti-me arrancada
das entranhas
de mim mesma
dos recônditos escuros
dos becos das grutas
do âmago da doçura e da pureza
e da doída amargura

um sonho
tão meu
um sonho
mais meu
do que dele
e acho
que sonhei só
então talvez
faça sentido
acordar só
todo dia.

(a face que pra mim refletia
a beleza de deus no sol
e a beleza da deusa na lua
a face que pra mim refletia
o relâmpago com sua beleza luzidia
a face que pra mim refletia
o poço profundo sagrado do que eu amava
e temia
a face que pra mim refletia
o espelho quebrado onde procurei
algo que eu própria não tinha
e obviamente não encontrei
e quando encontrei a mim mesma
comecei a aprender a parar de fugir
sentir e me firmar

no que eu posso conduzir
pra me curar me salvar me limpar
e seguir
até que eu encontre
quem me faça desistir de seguir contigo
pois por mais bonito que soe
o sonho
o despertador tem tocado
insistentemente
e quanto mais doloroso eu torno
o processo de acordar
mais longe estarei eu do dia
em que acordarei

mas sem me lamentar
perfeitamente satisfeita na minha cama aquecida
com meu próprio calor
em vez de sentir
toda
essa
saudade
do seu.)

Ptolomaica

- Eu gosto de poliedros.
- Eu gosto de vértices.
- Eu gosto de arestas.
- Ah, disso eu não gosto.
- Por quê?
- Acho que pela expressão "aparar arestas." Me traz a sensação de perdas.
- Eu não gosto de perdas.
- Nem eu. Quem gosta? Mas a gente aprende a lidar. A ressignificar. A sobreviver. A coexistir. A recomeçar.
- Eu gosto de ressignificar. Eu gosto da ideia de que "todos os fenômenos são vazios em sua essência".
- Eu gosto de budismo.
- Eu gosto de umbanda.
- Eu gosto de meditar.
- Eu gosto de rezar um terço.
- Voltemos aos poliedros. Eu gosto de geometria.
- Eu gosto de matemática.
- Eu gosto de astronomia.
- Eu gosto de astrologia.
- Eu gosto de Ptolomeu, das dignidades e debilidades planetárias.
- Eu gosto de astrologia moderna.
- Aí já é vandalismo. Ptolomeu era de Alexandria. Eu gostaria de Hipátia, mas os homens a mataram.
- Os homens matam demais. Não gosto disso.
- Nem eu. Eu gosto de estar viva.
- Eu também. Eu gosto de buscar.
- Eu gosto de achar.
- Eu gostaria, mas ainda não achei. Eu gosto de caminhar
- Eu gosto de você.
- Eu não. Sinto muito.

segunda-feira, 12 de maio de 2014

senda

na senda do amor
sou rainha
sem rei algum
tampouco outra rainha
reino só
em meu trono de ouro
meu império de gatinhos
livros
comidas
poesias

nesta senda, neste reino
eu não temo e não receio
não ser o bastante pra alguém
eu não temo, nem receio
minhas lágrimas serem indecorosas
eu não temo e não receio
que algo seja um problema
senão for  pra mim mesma

nesta senda, neste reino
eu impero e governo
segundo meu bel prazer
segundo meu humor
ou segundo minha dor

nesta senda do amor
eu tenho caminhado só
ora feliz, ora chorosa
contudo, livre
pra ser
o que eu quiser
ou conseguir
dia após dia
até que a melhor versão de mim mesma
encontre alguém que eu ache
à altura também.

(pois quem encontrei
não deve de ter sentido o mesmo.)