terça-feira, 7 de fevereiro de 2017

Vênus em peixes

para Luana Carneiro e Adrian Gomes


- Eu gosto, sabe, desse negócio de as pessoas mudarem - ela disse, os longos cabelos pretos caindo sobre o rosto arredondado.
- Você acha que elas de fato mudam? - a outra perguntou, deitada com seus joelhos ossudos debaixo de um bloco de alguma quadra qualquer. - Mudar pra valer?
- Pô, eu acho. Veja bem. Veja nós. A gente já viveu tantas vidas numa só.
- A gente aprendeu umas coisas, né?
- A gente aprendeu até a se bastar. Dependendo do quanto chove, acho.

A de cabelos pretos se chamava Verônica. A de joelhos ossudos e olhos puxados se chamava Alice.

- Sei lá, essa capacidade humana de se reinventar, eu acho ela tão impressionante, tão magnífica, essa nossa potência de transmutação tão cabulosa que permite que um reaça vire anarquista, eu mesma virei, ou o contrário, que um sindicalista que amava o ideal comunista de todo coração se torne um leitor de Veja. Você não acha?
- Tem nossa galerinha, também, as gotilelês - Alice disse, com um sorriso sarcástico - Bauhaus com chá de camomila, essas coisa.
- Rola - Verônica disse, pensativa. - E sei lá. O amor.
- Lá vem você - Alice revirou os olhos - Haja água no mapa, peixinha.
- Me deixa em paz!! - Verônica cruzou os braços, emburrada - Voltando: o amor. É uma parada muito louca. Você já amou muito alguém, tanto tanto que num olhar, ou num beijo, ou em algum momento aleatório da convivência de vocês, você pensou o quanto da sua identidade naquele momento tinha a ver com amar aquela pessoa? Tipo assim, você era aquele amor. Sua identidade, essência, sei lá, chame como quiser, estava dissolvida naquele sentimento. Algo tão completo que era difícil lembrar quem você era antes daquilo. Ou crer que você seria algo depois daquilo. Você era aquele amor, todinho.
- Você tá falando da Fernanda? - Alice perguntou, preocupada.
- Tô. Mas calma - disse, levantando a mão pequena, de dedos gordinhos, pedindo paciência - Você vai ver onde quero chegar. Veja, faz dois anos já do término. Sete que a conheci. Meu Deus, eu amei aquela mulher tanto quanto pode se amar, tanto quanto um ser humano quebrado pode amar outro. Éramos duas fodidas. Mas era muito real. Era visceral, era lindo, mas era também corrosivo. Limites: nós duas não trabalhávamos, eu e ela. Achei que eu ia morrer quando acabou. Era muito difícil crer que existiria vida sem ela. Após ela. Mas todo cambia, já diria Mercedes Sosa. Tudo muda. Eu me senti amputada quando nos separamos. Tudo me lembrava ela: doía. Como quando eu perdi meu irmão.
- Acho que o término tem suas similaridades com luto, mesmo - disse Alice, cautelosa - Assim, de relações muito intensas e profundas, ao menos.
- Poisé - Verônica brincou com o girassol em suas mãos, colhido clandestinamente de um jardim que dizia "Não pise na grama" - Poisé. Eu não tenho dúvida de que a gente se amou. Apesar de tudo. E olha que esse tudo incluiu muita coisa terrível, você sabe, acompanhou de perto toda aquela patifaria. A gente se feriu muito, muito, eu e a Fernanda. Mas a gente se amou, se cuidou, se amparou. E se separou. E é muito louco porque mudou tanta coisa dentro de mim em todo esse processo que, por mais que eu saiba que me marcou muito, parece a vida de outra pessoa. Eu não sinto mais saudade dela. E me sinto verdadeiramente feliz que ela esteja com outra pessoa e pareça bem.
- Cê jura?
- Juro, miga.
- Arrasou na maturidade.

Verônica deitou no colo de Alice.
- Mas nada é à toa, as coisas não se perdem no tempo nem no vácuo da memória, apesar de. Apesar de parecer, muitas vezes. Tudo que eu vivi, com ela, sem ela. Com meus amigos, amigas, com minha mãe, com meu irmão, com meus empregos, minhas faculdades. Tudo que eu vivi de pedaços e inteirezas, tudo que eu vivi com Fernanda, sem Fernanda, apesar de Fernanda, e com outras pessoas, serviu pra me dar novas perspectivas de amor. Eu sei que na hora certa, eu vou amar novamente. E diz o Khalil Gibran algo na linha de "não busque guiar o amor, pois é o amor que nos encontra, se nos julgar dignos dele". Eu acho isso.
- Eu sei lá se acho isso. Tenho lua em capricórnio - Alice deu de ombros. Verônica revirou os olhos. - Qual é o seu ponto, afinal?
- Que eu precisei de algum jeito precisar passar por tudo isso para me tornar quem eu sou hoje. E porra, eu sou foda. Eu mereço alguém que me ame em minha plenitude, e a pessoa merece que eu dê meu melhor para amá-la na totalidade. Isso significa que eu sobrevivi, que eu segui, que aquela época tenebrosa em que você me visitou na clínica é página virada. Significa que nossa amizade e nosso amor me deram asas para eu estar aqui, e que esse é um amor dos mais bonitos da minha vida, ainda que não romântico.
- Talvez nosso amor e amizade sejam tão incríveis e construtivos exatamente por não serem românticos - Alice disse, dividida entre o gracejo e a sinceridade.
- Eu sei o que você quer dizer com isso. E eu entendo. A gente viveu tanta coisa tóxica em nossos namoros, fica a dúvida de se a culpa é da famigerada paixão, se ela nos tira dos eixos de tal forma que emergem essas sombras tensíssimas da nossa personalidade. Mas eu acho, eu acho que não é só isso. Porque bom, eu amo amar. E preciso crer que dá pra amar sem destruir nem se deixar ser destruída por quem está na nossa frente, ao nosso lado.
- Você vai conseguir, minha amora. Tenho certeza. Eu acredito em você. - Alice deu um beijo nas costas da mão de Verônica.
- Obrigada por ouvir.
- Obrigada por sentir. Obrigada por continuar, por não ter desistido, naquela época horrível. Como seria ruim, sabe, não estar aqui agora pra desfrutar dessa sua linda pieguice pisciana? Acho que eu teria de assistir A culpa é das estrelas. Brincadeira. Você é uma estrela, você é uma das estrelas da minha vida.
- E você é a lua das minhas noites. Acho que a verdadeira guardiã da noite é você. Mas ambas sabemos que o dia vem clareando.
- Sempre.

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