segunda-feira, 19 de outubro de 2015

Seca II

- Talvez em certos níveis o amor tenha sido sempre  algo que eu achei  que precisava conquistar - Samantha disse, a mecha de cabelo vermelho caindo pelo rosto enquanto ela tomava um gole de café. - Talvez o amor sempre tenha me parecido algo muito árduo de se alcançar, e por isso me parecia natural, então, estar em relações exigentes e desgastantes.

- E você ainda acha isso? Que o amor é difícil de alcançar? - respondeu sua amiga, Aletheia. Olhos escuros, perspicazes e profundos. O sorriso de quem poderia rasgar a garganta de um homem. Mas nunca havia feito isso. "Infelizmente", diria Aletheia.

- Essa é a tragédia da coisa, né? Eu acho, sim, eu ainda acho que o amor é difícil de alcançar, mas preciso desconstruir isso. Com urgência. Não que o amor seja fácil, mas não pode ser algo pelo qual você só sangra e dá e luta e se esforça pra cada vez parecer se pôr mais fora de alcance ainda.

- Sabe uma coisa que eu acho engraçada? - Aletheia disse, acendendo um cigarro - A expressão "Dar murro em ponta de faca". É uma metáfora tão boa, porque é algo tão burro, você usar toda a força de um soco pra dar murro na ponta afiada de uma faca. Dói, sangra, e a genialidade dessa metáfora é que não é uma metáfora pra um sacrifício bem recompensado. Não é, sei lá, "Deus ajuda quem cedo madruga". É uma metáfora pra uma dor vã. Um esforço vão. Você tá lá, sabe, dando murro na ponta da porra de uma faca. Não tem como sair algo de bom nisso. Só mãos cortadas.

- Com mãos cortadas talvez fique mais difícil abraçar. O que talvez não fosse nada mal - disse Samantha, frustrada.

- Você sabe que ainda dá pra abraçar, mesmo depois de termos nossas mãos cortadas. E que talvez isso seja uma coisa boa, no final. Se aprendermos a abraçar as pessoas certas.

- E você acha que dá pra aprender?

- Acho que você errou de novo - disse Aletheia, alegremente. Samantha revirou os olhos - Não, sério. Acho que podemos aprender, sim. Temos de aprender. Essa socialização feminina horrorosa faz a gente achar que amor é se anular. Que tem algo de bonito e altruísta em desgraçar a própria cabeça tentando fazer um amor funcionar a qualquer preço. Mas não dá, não compensa, não é o que merecemos. A gente merece sim abraçar alguém com quem nossas mãos não pareçam mais cortadas por repetidos murros em ponta de faca. A gente merece alguém com quem nossos cortes possam ir sarando. E às vezes eles só saram direitinho quando encaramos eles sozinhas. - Aletheia concluiu, pensativa.

- Você é uma das pessoas perto de quem meus cortes vão curando, vão sarando, vão reduzindo de tamanho. Talvez você seja até como uma pomada que reduza os quelóides das cicatrizes profundas que foram cicatrizadas de um jeito errado. Eu te amo tanto que eu poderia escrever um livro sobre isso -  Samantha sorriu.
- Escreva o livro. Vai ser ótimo. Tenho ascendente em leão, você sabe, vou cobrar. 

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