quarta-feira, 24 de julho de 2024

hypatia II

uma saudade avassaladora
que eu engulo todo dia 
com muita água e óleo 
soterrada de atividades
preocupações
sobrando pouco minutos por dia pra poder vivenciar o luto

que não acaba 

neste samsara que não acaba
onde foi repousar
sua alma?
longe da minha
despedaçada

sigo em frente apesar de tanta dor
não sucumbo a essa dor por soterrá-la 
para não vivê-la
eu me escondo 
no caos cotidiano aterrador

mas eu sei que não passou
"nada se perde
tudo se transforma"

eu não sei em que eu me transformei
ainda
eu não tenho coragem pra viver sendo eu
eu iniciei uma transição frustrada 
e perdi meu amor no meio
ou tinha mesmo de ser assim? 
que destino espera por mim?

Guardiã dos Quatro Portais do Arco-Íris
qual o chamado da alma
desta encarnação
será suficientemente nutritivo
para que valha

a perda do meu amor
o brutal estilhaço
em meu coração

e eu só peço a Deus
que cuide do seu coração
que seja cuidado
por alguém melhor do que eu 
alguém sem meus erros
alguém que saiba lidar melhor com tudo
que eu não soube

daqui, lahata, eu sigo te amando
escrevendo palavras que você provavelmente jamais lerá
mas se posto-as aqui, em vez de registrar somente em caderno
é a esperança de que um dia vejas
e saiba que sinto muito, muito, muito
e que o que restou aqui de mim pra ti não foi rancor

foi e é amor
sempre amor  

que não acaba
e estou tentando eu mesma não acabar

mas tropeço pelos cantos
e te peço perdão se eu não conseguir me bastar

que seu doutorado seja melhor que o mestrado
que seus próximos 27 anos sejam melhores do que os que tiveste

e que eu repouse
nos braços do mar. 

segunda-feira, 10 de junho de 2024

Violeta

 (08.06.2024)

Violeta se foi para o céu
para los cielos Violeta se fue
em 2007 descobri que podia cantar
com Run run se fue pa'l norte
Violeta foi para o céu com su rin de angelito
seu coração foi ferido 
de formas múltiplas como suas artes

honro minhas raízes 

da beira do Pacífico que não conheço

e há tanto que não conheço 

há tanto a buscar e reencontrar

reencantar

pois como aprendi com Luiz Simas

o contrário da vida não é a morte

é o desencanto


e na minha cosmopercepção própria

forjada, evidentemente,

por todos meus atravessamentos

hoaskeiros, acadêmicos

brasileiros, chilenos

exilados na diáspora de mim mesma 

(minha mãe jamais retornou de Ítaca

tampouco meu pai Ulises)


neste caminho em que nasço

no cruzamento entre Anápolis e Santiago

para eu vir ao mundo na Ilha da Magia

sou tocada pelas que, como eu, lutaram

criaram

e viveram

e partiram

pereceram

ou não 


sou cria das artistas vivas e mortas

"yo soy la voz de mis ancestros y vine acá hacer un rezo"

Violeta partiu como minha mãe

a primeira vez que a ouvi, chorei 

sem sequer entender a letra

mas entendi a dor


sigo buscando ser uma artista viva

com mis dolores e mis semillas.


quinta-feira, 30 de maio de 2024

hypatia

eu sempre te amarei
minha biblioteca
de Alexandria

eu amarei nossos livros 
queimados e não queimados 
eu amarei os papos
[encerrados?
em suspenso
solução em suspensão no ar

eu amarei as memórias 
assíncronas e síncronas
heterocronia
sinóptica

hoje vi uma piada radioativa duvidosa
lembrei do Billy
da gostosicite
de nós

no baú das memórias 
ecoam os versos
que não te escrevi
e o coração pesa pensando
que não te amei o suficiente 
porque errei
tanto

meu coração também sussurra
que amei, sim
amei e amo
de todo coração

mas quanto mais eu me aproximei de mim
quanto mais inevitável
tornou-se minha travessia
de transição de gênero 
mais meu coração se distanciou do seu
em cada súplica ou desabafo trans
em que sua mão não me segurou mais forte
em que não te senti
realmente comigo

quanto mais perto de mim mesma cheguei
mais nosso amor pareceu um ultimato
entre nós e meu gênero 
entre nós e minha sexualidade
entre nós e meus medos 
entre nós e seus medos
nosso amor infinito
escorrendo pelos dedos 
a mão buscando segurar água 
pingando tristeza

todo dia penso em você
em seus olhos enormes
seu cabelo escuro como um anu preto
eu ainda queria ser seu petit oiseau
agora eu sou o pajarito de ninguém 
mas você segue meu lahatinha
por dentro

entre nosso amor e minha sanidade
entre nosso amor e minha identidade
eu precisei escolher
e essa escolha brutal 
realizada num impulso errado 
quase me matou 

onde estamos nós?

como chorei ouvindo Every breaking wave
“if you go your way and I go mine
are we so helpless against the tide?”

meu erro pode ter custado nosso amor para sempre
e todo dia convivo com isso
em paralelo 
eu me assumi
com toda a dor que isso traz
sem você ao meu lado
sou um eunuco estilizado 
sem meu amor ao meu lado

quase me afoguei de tanta dor

mas entre nosso amor e quem eu sou
eu precisei me escolher
até hoje não durmo bem 
meu corpo ainda não acostumou com a sua falta
mas já não acordo tanto com os barulhos de madrugada
estou aceitando que ninguém virá me salvar ou me buscar
a princese aqui sou eu
embora quanta saudade sinto
dos seus braços me envolvendo
e de te dar waifus

é muito provável que você, meu amor
jamais chegue a ler estas minhas linhas
é outra que é seu amor hoje
e se um dia amigos formos
talvez não faça mais sentido te mostrar isso aqui 

mas se acaso você parar aqui
saiba que eu me arrependo da forma do fim
e vou amar você até o meu fim
mas entre nosso amor e transicionar
não deveria ser uma escolha, mas foi
entre a paz da minha identidade
e a paz dos seus braços
eu escolho a mim
ainda que eu ame
cada pedaço 
do seu coração 

eu vou amar você até meu fim
mas está na hora
de remar para longe de Caronte
e regressar a mim mesme

no espaço do astral 
que o dia que fui seu espaço seguro em sonho
seja uma lembrança que viaje no tempo interestelar
e ajude você a se curar de mim 
não fui só erro e descontrole
houve amor e travessia
e te amarei até o fim
com Shiva, Clio e Valdirene

da pira em que arde meu amor
que como fênix eu pereça
e renasça
maior.

quarta-feira, 10 de maio de 2023

átropos II

Cassandra morreu em 2022
vítima de suas profecias não ouvidas 
Delfos e sibilas 
serpentes intoxicantes
fimda a semente crioula preferida
a esperança

ficou o resto, o pó
o véu, a falta
a angústia, a vergonha
cabelos caindo nos dedos
no ralo
ficou o medo, o nojo
o ódio, a raiva
a incompreensão
pedidos de ajuda que foram sim verbalizados
e mal atendidos
ficou o gosto amargo na boca
de quem não pode se esquecer do que aconteceu
dentro
dali

ficou o fim de si
ficou o alarmante começo de um novo tipo
outro
de dor
de mal estar
em si 
de mal estar em se habitar

cortam as moiras os fios
da vida, da morte
Penélope refaz o desfeito
Cassandra cansou de profetizar 
Ifigênia aceita o fim

Átropos vem embalar
o sono de quem não dorme
de quem quer descansar
haja Estige para tanto pranto
haja moeda para tanto Caronte 

as sementes de romã
envenenaram-se
e não sei quantos ciclos de Perséfone
restam por aqui. 

sábado, 8 de outubro de 2022

harvest moon


(08.10.2022)

minha lua de todas as colheitas
pukem, pewü, walüng, rimu
minha colheita de todos os entremeios
entremundos
lemniscato, ouroboros 
espiralando
minha lua venusiana
guñelve dos meus dias 
estrela das minhas travessias

estrada acidentada
sempre foi a minha
não, assim não quis, não escolhi
os atrapalhos
os obstáculos 
mas elegi algumas travessias
contigo, a mais bonita 
minha lua que cura a nostalgia
da luz e da falta
das faltas

depois de desertos de monocultura
encontrei-me com o verde
nutritivo de nossas veredas
no planalto, na chapada
em ti meu solo encontrou morada
para sementes mais prósperas
não envenenadas:
resgatadas
melhoradas
germinadas

em corpos que faltam ou transbordam
das margens da heteronorma
contigo tateio e vislumbro
reocupar minha própria pele
este território que me foi exilado
contigo refloresto e floresço 
sob a lua de nossas colheitas
sob as bênçãos da cordilheira

como aprender uma nova linguagem
look baby, last night
eu sonhei que valia a pena continuar
porque em algum momento nos cruzaríamos
e a travessia, então
seria dotada de aprofundamentos
mais bonitos
como o sol
como a lua.

terça-feira, 16 de agosto de 2022

küyen

(21.07.2022)

epu küyen trawengü
canta Anahí Rayen  Mariluan 
duas luas se encontram
podem ser teus olhos cheios
enormes como as marés
os meus 
puxados minguantes
confluindo e convergindo
para más adentro 
mar adentro

epu küyen trawengü
duas luas 
noturnas 
vagando 
caranguejo das memórias 
carrega a casa nas costas
a minha fica tão mais bonita
a bagagem suaviza
na colisão entre nossos mundos
esta sim um encontro
sem mentiras coloniais de encontro 
quando é conquista
nossos saberes compartilhados sem invasão

encontro seu cheiro nos meus lençóis
suas palavras em meu coração
seu olhar enluarado
combinando com o meu 
epu küyen trawengü

além de lânguida, minha mãe me sabia 
lunar
nem eu nem ela conhecíamos 
os mistérios da astrologia, ainda
mas ela me viu todinha em Os benefícios da lua
de Baudelaire
meu oikodespostes
e sendo o astro da minha natividade
sendo minha lua domiciliada
quando te amo volto para casa
a âncora do navio desvia do suicídio 
one more time with feeling
o norte do nosso futuro escrito 
no hermetismo cabalístico
em que cada palavra dá sustentação a obra
sem cair
sem cair
a nós, sem provisão de dor 
desta já tivemos em demasia

travessia
epu küyen trawengü
desfazendo compressões 
encontrando constelações
a nostalgia da luz que sempre me perseguiu
alivia quando contemplo seu brilho 
que não agride meus olhos
ilumina minh'alma 
contigo minhas lágrimas de prata encontram lugar
para virarem kimün
sabiduría de nosotros 
vivos. 
 

quinta-feira, 14 de julho de 2022

10 anos sem ela

(04.05.2022)

eu era a Pepa da minha mãe

porque segundo ela, significava "semente"

em espanhol 

conheci por semilla

mas sempre serei a pepita dela 

do ouro debaixo da terra


minhas entranhas raízes 

sangraram sem estancar

por anos 

não são pele íntegra hoje

são fragmentos 

tantos 


alados

quebrados


nesse anos todos

tanta mitologia grega

Deméter e Perséfone

Dédalo e Ícaro

voo com o Sol, mãe

mas não a ponto de queimar minhas asas

ou a ponto de cair 

ou se cair, não a ponto de afogar

uso das artimanhas de Ulises

Odisseu 

protegido de Hermes e Atenas

que alguma vida também me deu 

crio caminhos e desfaço a teia 

toda noite se necessário 


teço errante a Chakana 

buscando ancestrais para amenizar 

a saudade 

que antecede a ti 

antecede até a mim

é saudade de viver pra cantar para as águas 

até o dia de voar sem medo de afogar


os tsunamis de meus pesadelos

crescendo na ilha da magia

o pânico insular pouco descreve o que senti 

ao perdê-la 

se até a isso sobrevivi

agradezco madrecita

por me trazer até aqui 


algum sentido um dia fará