meu olho está doendo
apareceu uma bolinha na parte vermelha
por dentro
dói quando eu pisco
eu vou marcar um médico
eu odeio médico
mas irei
me pergunto se está doendo
porque eu não quero enxergar coisas
que estão tão visíveis
que me estilhaçam por dentro
que me estilhaçam nas vistas
quando eu era criança
minha mãe teve um namorado violento
eu o odiava
e a odiava por aceitá-lo de volta
repetidas vezes
eu não conseguia ter empatia por ela
porque eu me sentia abandonada
ele sumiu com meu cachorro
ele se chamava Pupi
era um labrador cor de areia
meu padrasto me tirou muitas coisas
e eu não conseguia perdoar minha mãe por isso
com dezesseis anos me tornei feminista
e entendi porque ela permanecia
porque ela retornava
trabalhei meu perdão
dentro do que consegui
nós retornamos por tanta coisa
por medo, dependência financeira
emocional
por receio do julgamento alheio
retornamos por medo de morrer
e às vezes somos mortas ao voltar
contudo
mesmo em relações
que nem remotamente são tão violentas
por que eu volto?
amar patriarcalmente
é morrer diariamente
e eu quero
desesperadamente
viver.
quarta-feira, 17 de julho de 2019
segunda-feira, 20 de maio de 2019
53 Chien
recupero-me diante
de uma queda
recupero-me diante
da perda de outro altar
anoitece o cerrado
outonesço eu
kin oculto, kin guia
"se há tantas cabeças
quanto são as formas
de pensar
há de haver tantos tipos
de amor
quanto são
os corações"
e, talvez,
as orações
o cerrado
é uma floresta invertida
muitas das árvores que aqui se vêem
tem raízes do tamanho do dobro
ou do triplo
de suas parcelas
visíveis
o dobro ou o triplo
está sob a terra
o cerrado
é meu ser amado
minhas raízes tiveram de ser
profundas
para que eu não morresse
de sede
nem da falta
caminhos distintos
que se entrecruzam
tecendo momentos
que podem ou não durar
vale a potência do encontro
valem as estrelas e o luar
dentro da minha cabeça
por ter podido estar.
sexta-feira, 12 de abril de 2019
intransponível
11.04.2019
existem distâncias
para as quais não há palavras
existem caminhos
que só são possíveis bifurcados
existem destinos
bordados para não ser
existem profundos
que não há toque capaz de reparar
existem abismos
cuja única forma de atravessaré voando
mas cansei-me
apesar de filha das águas
meus pés pertencem a solo terrestre
e embora cansada
exausta
de caminhar
me comprometi
eu vou até o fim
ontem um monge budista
disse:
"difícil é receber a vida na forma humana"
por ora é a minha
"corpo: perfeito instrumento de tentar".
existem distâncias
para as quais não há palavras
existem caminhos
que só são possíveis bifurcados
existem destinos
bordados para não ser
existem profundos
que não há toque capaz de reparar
existem abismos
cuja única forma de atravessaré voando
mas cansei-me
apesar de filha das águas
meus pés pertencem a solo terrestre
e embora cansada
exausta
de caminhar
me comprometi
eu vou até o fim
ontem um monge budista
disse:
"difícil é receber a vida na forma humana"
por ora é a minha
"corpo: perfeito instrumento de tentar".
sexta-feira, 1 de março de 2019
escombros
28.02.2019
às vezes me sinto como
escombros
ruínas do que eu poderia
ter sido
sacudo a cabeça e suspiro
eu não tive outra vida
eu não tive outra família
eu não tive outra infância
nem outra adolescência
eu tive o que a vida me deu
tive também amor
tive também cuidado
tive também incentivo
tive também meus dons
e os tenho ainda
e os carrego comigo
tive a vida que recebi
e tenho hoje a vida que escolho
tenho minha saúde
tenho minha coragem
tenho a consciência
do quanto me custou cada passo
para chegar até aqui
se a metáfora com escombros
e ruínas
me veio a mente
tenho meu flerte contra a civilização
contra a colonização
e a domesticação de corpos
e a tentativa de destruição
do espírito
promovidas pelo capital
como uma cidade abandonada
dia após dia, se deixar
se recobre de verde
gradualmente
heras cobrindo paredes
raízes rachando calçadas
se eu fosse ruínas de cidade
eu escolheria tornar-me de novo
floresta
árvores frutíferas
árvores floridas
árvores alquímicas
com o princípio mais sagrado
a vida
e toda cura
e toda morte
que ela contém.
às vezes me sinto como
escombros
ruínas do que eu poderia
ter sido
sacudo a cabeça e suspiro
eu não tive outra vida
eu não tive outra família
eu não tive outra infância
nem outra adolescência
eu tive o que a vida me deu
tive também amor
tive também cuidado
tive também incentivo
tive também meus dons
e os tenho ainda
e os carrego comigo
tive a vida que recebi
e tenho hoje a vida que escolho
tenho minha saúde
tenho minha coragem
tenho a consciência
do quanto me custou cada passo
para chegar até aqui
se a metáfora com escombros
e ruínas
me veio a mente
tenho meu flerte contra a civilização
contra a colonização
e a domesticação de corpos
e a tentativa de destruição
do espírito
promovidas pelo capital
como uma cidade abandonada
dia após dia, se deixar
se recobre de verde
gradualmente
heras cobrindo paredes
raízes rachando calçadas
se eu fosse ruínas de cidade
eu escolheria tornar-me de novo
floresta
árvores frutíferas
árvores floridas
árvores alquímicas
com o princípio mais sagrado
a vida
e toda cura
e toda morte
que ela contém.
segunda-feira, 19 de novembro de 2018
laríngeo
meu sistema imune é muito bom
eu me alimento bem
eu sei me cuidar
eu sei as ervas certas
e sei buscar ajuda
o que me adoece, vez e outra
são minhas emoções
expurgo toxinas sentimentais
minha energia escassa escasseia mais
o gosto amargo na boca
a garganta doendo, a voz rouca
talvez seja a compensação do meu corpo
para não gritar
se adoeço, busco repouso
recolho-me para me refazer
mais do que remédios, eu respeito
que o que preciso é digerir
mágoas
raivas
e quaisquer estilhaços de decepção
que possam ter se alojado em meu peito
para as dores do corpo há diversas ervas
para as da alma também
contudo, por vezes, para curar
o principal é silenciar
deixar sangrar até que passe
aprendendo com o infortúnio
de que forma seguir remando
para a outra margem.
eu me alimento bem
eu sei me cuidar
eu sei as ervas certas
e sei buscar ajuda
o que me adoece, vez e outra
são minhas emoções
expurgo toxinas sentimentais
minha energia escassa escasseia mais
o gosto amargo na boca
a garganta doendo, a voz rouca
talvez seja a compensação do meu corpo
para não gritar
se adoeço, busco repouso
recolho-me para me refazer
mais do que remédios, eu respeito
que o que preciso é digerir
mágoas
raivas
e quaisquer estilhaços de decepção
que possam ter se alojado em meu peito
para as dores do corpo há diversas ervas
para as da alma também
contudo, por vezes, para curar
o principal é silenciar
deixar sangrar até que passe
aprendendo com o infortúnio
de que forma seguir remando
para a outra margem.
domingo, 2 de setembro de 2018
release your dead, holy ancestors
(18.08.2018)
a vida é cheia de mistérios
uns lindos, outros trágicos
belezas sutis
enquanto eu conseguir,
que minha existência
que minha persistência
em estar aqui
seja também um tributo
a quem não conseguiu seguir
pois sei quanto dói
e sei quanto custa
este para alguns tão mero fato
de estar aqui
eu choro meus mortos
e os honro também
há gratidão pelo que foram e são
e não há julgamento por suas decisões
meu lamento é acompanhado de compreensão
suicidas são egoístas?
o que somos nós então quando queremos
ao nosso lado
pessoas dilaceradas
que não conseguem mais seguir?
temos o direito de querer, de pedir
que alguém passe décadas de dor viva
para nós não vivermos um luto?
eu sei que não tenho esse direito
e com essa consciência, eu deixo ir
quero quem amo vivo para que possa
se possível
ser feliz
não quero que ninguém viva por mim
o amor que tiveram por mim
me manteve viva também
vezes demais foi apenas pensar nos outros
que me impediu de dar o passo final
the final cut
hoje todavia sigo por mim
é a mim que devo a chance
desta nova vida
em que seguir é possível
e bom
eu amo, honro e abençoo
meus mortos e minhas mortes
honro os ecos feridos de meus ancestrais
porém meu pacto atual
é com a vida
novamente, todo dia
eu escolho viver.
*o título do poema foi retirado da música Ancestors, the ancients, de Chelsea Wolfe
a vida é cheia de mistérios
uns lindos, outros trágicos
belezas sutis
enquanto eu conseguir,
que minha existência
que minha persistência
em estar aqui
seja também um tributo
a quem não conseguiu seguir
pois sei quanto dói
e sei quanto custa
este para alguns tão mero fato
de estar aqui
eu choro meus mortos
e os honro também
há gratidão pelo que foram e são
e não há julgamento por suas decisões
meu lamento é acompanhado de compreensão
suicidas são egoístas?
o que somos nós então quando queremos
ao nosso lado
pessoas dilaceradas
que não conseguem mais seguir?
temos o direito de querer, de pedir
que alguém passe décadas de dor viva
para nós não vivermos um luto?
eu sei que não tenho esse direito
e com essa consciência, eu deixo ir
quero quem amo vivo para que possa
se possível
ser feliz
não quero que ninguém viva por mim
o amor que tiveram por mim
me manteve viva também
vezes demais foi apenas pensar nos outros
que me impediu de dar o passo final
the final cut
hoje todavia sigo por mim
é a mim que devo a chance
desta nova vida
em que seguir é possível
e bom
eu amo, honro e abençoo
meus mortos e minhas mortes
honro os ecos feridos de meus ancestrais
porém meu pacto atual
é com a vida
novamente, todo dia
eu escolho viver.
*o título do poema foi retirado da música Ancestors, the ancients, de Chelsea Wolfe
sábado, 9 de junho de 2018
sobrevivência
o capitalismo existe, infelizmente
e já que existe tangível
e cobra sua materialidade
às custas de nossa carne
a resistência passa pelo corpo
descosturemos nossos lábios
e bocas silenciadas
encher o pulmão de ar para clarear as ideias
e também para gritar
costurar laços de solidariedade
real
uma jovem mulher suicidou-se
e as aulas no prédio fatídico
foram mantidas no dia seguinte
a única resposta aceitável para isso
seria a via da ação direta
incendiar a reitoria
mas eu tenho, nós temos
medo
a miríade de acúmulos de catástrofes
que, por vezes, chamamos de capitalismo neoliberal
pode ser quantificada com uma série de números
há porém diversas tragédias anônimas
toda prisão é política
e, ao meu ver, todo suicídio também
não estamos no vácuo
o social nos perpassa
e frequentemente nos mata
no plano simbólico
ou um corpo no chão
Elly, presente
Maria Beatriz, presente
Gabriel Mosna, presente
Ariadne, presente
e também eu estou presente
a despeito das feridas
sigo e permaneço viva e combativa
pois o ódio que sinto pelo sistema
e aos que dele se beneficiam
sem sentirem nenhum pesar
este meu ódio é a expressão política do meu amor
pelas pessoas, pela natureza, por mim mesma
no solo árido de um capitalismo assassino, capataz,
cruel, algoz
existem sementes de revolta
não joguemos agrotóxicos
não precisamos do glifosato
ou benzoato de emamectina
adubemos nosaas sementes de ódio, revolta e revolução
com o amor contra-hegemônico
de quem sabe que outro mundo é possível
um mundo verdadeiramente humano
em que caibam muitos outros mundos
que cada lágrima de quem luta
irrigue este solo
e que a esperança brote e floresça
em nós que ainda estamos
por aqui
eu quero menos suicídios
e mais molotovs.
e já que existe tangível
e cobra sua materialidade
às custas de nossa carne
a resistência passa pelo corpo
descosturemos nossos lábios
e bocas silenciadas
encher o pulmão de ar para clarear as ideias
e também para gritar
costurar laços de solidariedade
real
uma jovem mulher suicidou-se
e as aulas no prédio fatídico
foram mantidas no dia seguinte
a única resposta aceitável para isso
seria a via da ação direta
incendiar a reitoria
mas eu tenho, nós temos
medo
a miríade de acúmulos de catástrofes
que, por vezes, chamamos de capitalismo neoliberal
pode ser quantificada com uma série de números
há porém diversas tragédias anônimas
toda prisão é política
e, ao meu ver, todo suicídio também
não estamos no vácuo
o social nos perpassa
e frequentemente nos mata
no plano simbólico
ou um corpo no chão
Elly, presente
Maria Beatriz, presente
Gabriel Mosna, presente
Ariadne, presente
e também eu estou presente
a despeito das feridas
sigo e permaneço viva e combativa
pois o ódio que sinto pelo sistema
e aos que dele se beneficiam
sem sentirem nenhum pesar
este meu ódio é a expressão política do meu amor
pelas pessoas, pela natureza, por mim mesma
no solo árido de um capitalismo assassino, capataz,
cruel, algoz
existem sementes de revolta
não joguemos agrotóxicos
não precisamos do glifosato
ou benzoato de emamectina
adubemos nosaas sementes de ódio, revolta e revolução
com o amor contra-hegemônico
de quem sabe que outro mundo é possível
um mundo verdadeiramente humano
em que caibam muitos outros mundos
que cada lágrima de quem luta
irrigue este solo
e que a esperança brote e floresça
em nós que ainda estamos
por aqui
eu quero menos suicídios
e mais molotovs.
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