quinta-feira, 7 de agosto de 2014

Agosto

- O que é morrer pra você? - Eliane disse, sentada na grama sob uma árvore.
- Uma trip? - respondeu Marcos, sob a mesma árvore.
- Mas para onde?
- Não sei. Importa?
- Claro que importa, Marcos! Não te dá um desespero pensar que a vida é finita? - Eliane arregalou os olhos e arrancou graminhas do solo como que para enfatizar a gravidade da pergunta.
- Na verdade... não. Eu nem penso muito nisso, sabe? E depois... a morte não é a certeza inexorável para todos nós? Eu fecho com Pink Floyd, "I am not frightened of dying, any time will do, I don't mind. Why should I be frightened of dying? There's no reason for ir. You've gotta go sometime."
- Tu realmente pensa que é simples desse jeito?

Eliane tinha 19 anos e cabelos escuros, chanel. Havia concluído a escola e prestara vestibular para Audiovisual, sem êxito. "Mas não estudou, queria o quê?," dizia Marcos.

Marcos tinha 24 e fazia Antropologia. "Maconheiro", dizia Eliane.

- Eu sei lá se é simples desse jeito, mulher. Eu nunca morri. - Marcos fechou o livro que estava lendo.
- Me surpreende como isso não é uma questão pra você.
- Veja bem. A minha opinião muda o desfecho? Não. A tua ansiedade muda o desfecho? Não. Isso tá além de nós.
- Você acha que existe um deus, Marcos? - Eliane colocou a mão sob o queixo.
- Não sei. Se existe, nunca senti. Então nem me grilo com isso também.
- Eu queria que houvesse, sabe? Deve dar um conforto simples.
- Conforto simples e cálido ou conjunto de dogmas castradores, depende, né.
- Ah, acho que fé e religião são coisas distintas.
- Não nego, fia, sou aprendiz de antropologista afinal, né? - Marcos sorriu.
- Nhenhenhé. E eu sou aprendiz de vida loka. Mentira. Tenho só contemplado a vida, ultimamente.
- E tem aprendido muito?
- Mais ou menos. A gente aprende um bocado observando, mas depende do quanto nos deixam entrar no universo alheio, né? - Eliane suspirou.
- Cê tá apaixonada, Eliane?
- Sim...
- Eita. E por que parece tão melancólica?
- É por uma mina. E eu acho que ela é hétero.
- E se for? Vai que ela abre uma exceção! - Marcos ensaiou uma cosquinha na barriga de Eliane.
- Seu comédia. Eu tô triste, véi.
- No final esse papo todo de medo de morrer é porque cê tá inlóvi, né?
- E o que uma coisa tem a ver com a outra?
- Bom, depende. Acho que o medo de morrer é humano. Acho que as religiões tem um papel essencial nisso. Elas preparam as pessoas pra morte, prometendo céu, reencarnação, descanso, ou no mínimo ritualizando a despedida dos seres queridos com quem vai.
- "Quem fica é quem sofre", diz a Ellen Oléria.
- Ou quem vai, vai saber? Mas voltando a minha teoria, amar dá uma pulsão de viver muito grande. Tem num livro que eu gosto, deixa eu pegar aqui... - Marcos abriu um caderninho em sua mochila e recitou - "Por que queremos viver para sempre? Porque desejamos que o dia de amanhã nos traga alguém que amamos. Porque queremos conviver mais um dia com a pessoa que está ao nosso lado. Porque queremos encontrar alguém que mereça nosso amor, e que saiba, por sua vez, amar-nos como achamos que merecemos."
- Que coisa linda. Eu nunca tive isso.
- Pouca gente tem, eu acho. Muitos relacionamentos são a mistura de duas crianças feridas com medo da solidão, as projeções de traumas de família, as carências. É uma dança meio triste, e o sexo vira válvula de escape.
- Pelo menos isso também acho que nunca vivi. Acho que vivi meio na superfície. Mas queria que fosse diferente com a Marina. Se ela não for hétero.
- O fato é que enquanto há vida, há esperança. Há tentativa e erro, há recomeço. Cê tá toda bolada com a morte, mas cê tem só 19 anos e a tendência é que isso demore. Enquanto isso, por que você não zela mais por cada dia? Por cada momento?
- Como agora?
- Como agora.

Se abraçaram. O cheiro um do outro evocava a amizade antiga e a confiança sincera, o tipo de confiança que se tem quando não se tem nada a perder, quando o medo do efeito de uma pessoa no seu universo individual cessa com a intuição de que aquele ou aquela só tem a agregar.

- Obrigada por ser meu amigo.
- Obrigada por gostar das minhas tentativas de te ajudar.
- Ajuda sim. Juro.
- Você me ajuda também, existindo, e quando eu verbalizo coisas pra ti eu às vezes percebo que servem pra mim também.
- E o que você conclui desse papo?
- Que bom que eu não tenho 19 anos e não sou desse seu signo horroroso de áries - riu Marcos, tomando uma livrada na cara.
- Muito melhor mesmo ser capricorniano!
- Claro que é, eu não sou seu poço de estabilidade saturnina? Minha filha, eu sou o oráculo de Cronos na sua vida.
- Prepotente...
- Linda! Maravilhosa! Deusa do fogo!


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