sexta-feira, 14 de março de 2014

Crônica do beco

À Luiza Coimbra e Carolina Knihs

Arde. Arde assim de um jeito morno, agridoce. Noutras arde pungente, rasga mesmo. Sim: corrói. Arde e ela atira para várias direções buscando que não arda. Ou que arda morno, suave. Seus êxitos são temperamentais.

Borderline não senhor, que havia método em seus excessos. Excessos e arroubos que ela já aprendera bem mais a controlar.

Depressiva? Que é depressão? Disfunção neuroquímica ou mal-estar da alma? Qual seria afinal o limiar da dor compreendida e a socialmente inaceitável? Critério arbitraríssimo é o de categorizar depressão como falta de funcionalidade. Depressivos notórios produziram coisas. Produziram inclusive seus próprios fins.

Já não se queixa; apreende. O que arde às vezes coça. Mas às vezes nem incomoda, embora ainda esteja lá. Contemplando com olhos diretos e sérios. Onisciente.

Respira fundo porque consegue fazê-lo. Porque pode. Respira fundo ainda que o ar em seus pulmões às vezes mais arda que alivie. Mas respira, sôfrega. Comovida. Aceitando.

Respira fundo na esperança que desfaça o nó no estômago; porém nem sempre. Ela lembra contudo de quando se perdeu uma vez num beco escuro tão comprido que achou que não houvesse saída. A noite fechando o cerco e os receios todos sibilando em seus ouvidos. Desespero. Toca as paredes do beco, passa os dedos procurando ranhuras no concreto. Toca a princípio com cautela, logo enfia os dedos na parede suja, arranha. Lasca as unhas. Não há saída pelos lados, não. Nada de tergiversar, embora tivesse medo. Respirou fundo como quem implora ao ar que lhe nutra com a vida. Fecha os olhos. Segue. Segue receosa, olha pra trás a cada dois passos. O beco, ah, o beco. Haveria será saída do beco? Ela não sabe.

Sabe é que ficar parada não é uma opção. Entregar-se ao desespero tampouco; isso não a protegeria dos perigos de estar sozinha à noite perdida num beco. Para ver a luz, precisava sair dali. Seguiu. Com medo mas convicção. Resoluta. Caminhou. Caminhou bastante tempo, que beco era aquele, meu Deus? Achou a saída, por fim. Aliviou-se. Ainda estava noite escura. Mas a noite não era eterna.

"Que importa a paisagem, a Glória, a baía
a linha do horizonte?
...o que eu vejo é o beco."¹

Ela via o beco. Todavia via também a paisagem, a Glória, a baía, a linha do horizonte. Via várias coisas e certamente ainda veria muito mais. Se insistisse o bastante.

Todos os becos são transponíveis.



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O poema indicado por * é de Manuel Bandeira. Serviu de inspiração  também o texto "Além do ponto", de Caio Fernando Abreu.

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