quinta-feira, 10 de fevereiro de 2022

al-Kali-minha

sagrada rebeldia
sigo insubmissa
arquiteta do meu próprio destino
não mais de minha própria ruína

com quantas Marias se faz uma Kali
com quantas Kalis se faz uma Maria
alquimista do deserto
ó profetisa 
no seu banho de cozimento lento
o banho Maria
aqueço meus ossos cansados 
dando origem a novo ser 

ó forças das deidades telúricas
ctônicas
ancorai meu propósito nesta terra
amar ao próximo 
e guerrear contra o injusto
contra o que impede
a todes a vida próspera
cabeças dos inimigos sob os pés
da subterrânea
morte terrenal, aurora espiritual
onde estarão também
as sementes
amanhecer vindouro
já estamos vencendo

"qu'un sang impur 
abreuve nos sillons"
da revolução francesa 
o que mais me agrada 
é esta parte
lavrar o campo da retomada
com o sangue simbólico da vitória
de nossos ancestrais 
fertilizar e cultivar até no futuro 
fome ser mito de branco

"sabia, meu neto, que houve épocas
em que se acreditava que a comida 
fruto do solo sagrado
não dava para todos"
e ele responderá "nada a ver
esse Malthus, hein, abuela"
e direi "sim
mas sempre, sempre
houve quem fizesse e acreditasse
diferente
firmei com estes
e vencemos".

quarta-feira, 9 de fevereiro de 2022

rebrota

07.02.2022
para  Clar(A), Rita Muniz e Brenda

nesta caixa de Pandora que é a vida
aferrei-me à esperança 
última que morre e base
de tudo que se vive 
Pandora, aprendi com minha mãe:
todos os dons
Teodoro: dons de Deus
seria inodoro o sem dons?
perdas olfativas da covid
tudo rebrotou

despeço-me deste território
sagrado
entrego meus dons
a serviço 
de todes
da humanidade
ventos
céu
terra
mar
meus dons a serviço

a brisa do linalol
presente na lavanda
manjericão
cannabis
me abraça
me afaga
me acolhe
tal como os corações
com os quais partilhei
meu butim
meus óleos
meu toque
minha presença

nunca é tarde
para renascer

meu coração sempre quis morada definitiva
fosse alguém
ou uma casa
lar físico para enraizar

tenho descoberto
os prazeres e a beleza
da itinerância
do trânsito
alado, mercurial
sou caminhante 
estelar
semeio a magia da vida
planto o que creio
por vezes nem estarei lá
para ver brotar
planto o que creio
na fé de que alguém 
colherá 
(como os milhos de Seu Jamil)

rio deságua no mar
maré é pêndulo lunar
fluxo refluxo
Pataxó, o som das ondas
ao quebrar
quero ouvi-las quebrar 
não quero ser eu a quebrar
quero agora sanar

planto o que creio
colho o que não plantei
e o que plantei também
semeio versos
plantarei amor a vida inteira
de uma forma ou de outra
alguém colherá
e que seja fértil e farta
a colheita
e o semear.

terça-feira, 4 de janeiro de 2022

seis

ele foi o raio que partiu minha árvore
inebriada de amor romântico messiânico
quis ver nisso bênção de Iansã
porém não foi raio de justiça
foi raio que arrebentou
seiva, floema, xilema
meus vasos internos
o raiu partiu minha árvore
sou de Oxóssi
ele também
a seta deveria ter sido
lançada com mais cuidado

dei-lhe um ofã preateado
ao final de tudo 
até isso foi razão para humilhação
seis 
com três seria nove
nosso mês de nascença 
cria do cerrado,
por que quase mataste minhas raízes?

em março completo um ano
de fim
este sem eterno retorno
é corte da cabeça de hidra de lerna:
cauterizei
na força da brasa 
de um telefonema na segunda clínica
uma ligação para desligar 
o que havia perdurado por demais 

a personalidade limítrofe
reverberou com tanta falta minha
quis curar, permanecer 
quis mergulhar na compulsão a repetição
se o salvasse
seria como salvar a minha mãe 
e a mim mesma 

eu salvei a mim mesma 
todos os dias dos últimos 27 anos
até nos que tentei desistir
eu permaneci 
eis-me aqui 
meu arco e seta apontam não para ele
só desejo o melhor
apontam para inimigo algum
minha seta aponta somente para frente
nas bênçãos das matas e cachoeiras 
minha suprema vitória é minha vida e saúde
e a última estação, esperança
trem este que pego todo dia. 

sexta-feira, 24 de dezembro de 2021

harmonia

(20.12.2021)

há dias
em que me dói muito viver
porque viver 
inclui carregar minhas lembranças 
que incluem minha infância
y otras cositas más

hoje o tempo é arte 
neste momento
presente instante 
amo ser eu 
pois isto inclui 
o agora 
o habitar
o transmutar 

ser eu inclui ser parte
ser poeta
poetisa
artesã
tecelã de versos
minha magia: a palavra 

da medicina do amor 
eu me alimento em abundância
a esperança
é uma semente crioula
que vale a pena cultivar
[resgatar 
não quero arar
a alma de quem adoro 
cultivar
é cuidar 

cuidar é
deixar ser
ser espaço aberto 
ao outro universo
no habitar-se
de outro corpo 
acolher a alma
contida num abraço
celebrar

respirar
respeitar
de movimentos pré-estabelecidos 
engessados na ordem e progresso
se faz o Congresso
do nosso afeto a
quero a organicidade
indomável
os sons estelares
do inefável
bem querer.

sexta-feira, 17 de dezembro de 2021

micorriza

para Álilien

etimologia:
mico, fungo
riza, raiz
associação simbiótica
benéfica a ambos
entre raízes de plantas 
e fungos 
nutrem-se ambos
mais nutrientes
mais superfície
de contato 

elu tem árvore nas costas 
e no coração 
o corpo é semente 
do amanhã que chegará
terra do bem virá, 
do Assentamento Terra Vista 
terra sem males dos Guarani

eu gostaria de levar-te para lá 
voando de vassoura
ou na força da jibóia 
eu gostaria de te levar
para longe dos males
seu coração é terra 
que não quero arar
não quero gradear
isso desfaz as estruturas do solo
e eu sou agroecológica

seu coração tem sido micorriza
para o meu 
minhas raízes aéreas
enfraquecidas
somaram-se às tuas
não perdi nenhum nutriente
ganhei vida, cuidado, incentivo
e amor
profundo como as raízes
da árvore da vida
que brota do inferno
e seus frutos são celestes 
não o céu cristão 
um paraíso decolonial
em que possamos rir
sacudir penas de Quetzalcoatl
folhas secas no terreiro 
balançar a dor para fora 

micorrizas são simbioses
das mais antigas da Terra
Kropotkin já deu a letra:
é apoio mútuo, não competição
sua força me floresce
e estarei contigo até o fim
mediante nossas vontades 
e o eterno retorno 
ouroboros do caos-ordem
vida-morte-vida
lemniscato do amor e abundância
que trouxeste a meus dias.

terça-feira, 16 de novembro de 2021

cupa yba

(29.03.2020)
para Alexandre


tenho me confrontado
dolorosamente
com o real
não por escolha
o inconsciente não perdoa
nem dá tréguas
apenas brechas
a serem preenchidas
 
utilizo-me das artimanhas da cultura
a fim de elaborar
minhas feridas que sangram
e não estancam
 
aprendi com minha mãe
a evitar usar bandaid
deixo meus cortes respirarem ao ar livre
 
às vezes, porém
uso sangue de dragão
ou óleo de copaíba
para que cicatrize mais rápido
isso não aprendi com ela 
 
quarentena na quaresma
tal qual Jesus vagando no deserto
meus demônios sussurram em meus ouvidos
ou gritam
é impossível silenciá-los
sequer energia teria pra isso
 
minha suprema desobediência
não é ao Estado
é a minha dor
minha maior rebeldia é estar viva
à revelia do quanto eu já quis
não estar.

terça-feira, 2 de novembro de 2021

carbo-a-mato

para Lilian

no dia dos mortos
meus maior presente é sua vida

sua vida
que sobreviveu a tanto
que sobreviveu a tantos

sua vida
veneno falhado
heterocispatriarcado falhado
mono Deus falhado

sua vida
que transbordou das cercas
que transbordou do livro sagrado
falhado
que você não escreveu nem escolheu
sua vida sobreviveu

sua vida indomável
seu corpo indomável
a domesticação de plantas
feita pelos originários
foi chamada de domesticada por algum branco
trazer as plantas próximas
e aprender a manejar
não precisa ser domesticar
pode ser amor
pode ser amar

os corpos em liberdade são mais felizes
e se dizem que "yo no creo en brujas
pero que las hay, las hay"
nós existimos
acreditem ou não
enunciamos nossas verdades

e o mundo inteiro pode me negar
eu sei que você me ouve
e portanto não me sinto só, me sinto inteira
não completa no amor romântico
me sinto inteira pois sou vista
escutada
amada
e minha palavra tem valor

você é meu sol não porque eu orbite ao seu redor
tampouco você sobre mim
você é meu sol
porque o escuro não me faz querer ir embora mais.