terça-feira, 16 de novembro de 2021

cupa yba

(29.03.2020)
para Alexandre


tenho me confrontado
dolorosamente
com o real
não por escolha
o inconsciente não perdoa
nem dá tréguas
apenas brechas
a serem preenchidas
 
utilizo-me das artimanhas da cultura
a fim de elaborar
minhas feridas que sangram
e não estancam
 
aprendi com minha mãe
a evitar usar bandaid
deixo meus cortes respirarem ao ar livre
 
às vezes, porém
uso sangue de dragão
ou óleo de copaíba
para que cicatrize mais rápido
isso não aprendi com ela 
 
quarentena na quaresma
tal qual Jesus vagando no deserto
meus demônios sussurram em meus ouvidos
ou gritam
é impossível silenciá-los
sequer energia teria pra isso
 
minha suprema desobediência
não é ao Estado
é a minha dor
minha maior rebeldia é estar viva
à revelia do quanto eu já quis
não estar.

terça-feira, 2 de novembro de 2021

carbo-a-mato

para Lilian

no dia dos mortos
meus maior presente é sua vida

sua vida
que sobreviveu a tanto
que sobreviveu a tantos

sua vida
veneno falhado
heterocispatriarcado falhado
mono Deus falhado

sua vida
que transbordou das cercas
que transbordou do livro sagrado
falhado
que você não escreveu nem escolheu
sua vida sobreviveu

sua vida indomável
seu corpo indomável
a domesticação de plantas
feita pelos originários
foi chamada de domesticada por algum branco
trazer as plantas próximas
e aprender a manejar
não precisa ser domesticar
pode ser amor
pode ser amar

os corpos em liberdade são mais felizes
e se dizem que "yo no creo en brujas
pero que las hay, las hay"
nós existimos
acreditem ou não
enunciamos nossas verdades

e o mundo inteiro pode me negar
eu sei que você me ouve
e portanto não me sinto só, me sinto inteira
não completa no amor romântico
me sinto inteira pois sou vista
escutada
amada
e minha palavra tem valor

você é meu sol não porque eu orbite ao seu redor
tampouco você sobre mim
você é meu sol
porque o escuro não me faz querer ir embora mais.

quarta-feira, 27 de outubro de 2021

clareia

para quem quer aprender
tudo é mestre
planta rasteira
cabruca, mata, floresta
jacu, matrizeira
quebra a dormência
da inércia
pra quem quer aprender
todo espaço é clareira


espaço vazio
do vácuo dos excessos
pra quem quer aprender
o universo clareia
alumia, faz-se luz
de olhos abertos
ouvidos alertas
coração aberto
torna-se elo da teia


quebrantos coloniais
vão ficando pela areia
medo de viver
medo de plantar
medo de errar
medo de vencer
ensina a raizeira:
toma o chá amargo
que faz ver jiboia
miração
e bota pra fora
todo inço errante
que já passou da hora

 

serpenteia o destino
eterno retorno
ouroboros da terra
no território do espírito
não tem cerca nem fronteiras
tem vida
e fartura pra quem semeia


neste feitio de ser gente
abençoo a cada passo
do caminho, da jornada
valorizo a travessia
e não temo a chegada
a Deus entrego o barco
e não busco sair pelas margens
da vida
da morte
pego o remo e decreto
palavra é magia
então jogo pro universo
eu vou até o fim.

segunda-feira, 9 de agosto de 2021

retomada

05.08.2021

relações agroecológicas
não alelopáticas
respeitar o ciclo das folhas
das flores
do crescimento
das sementes
e da poda
dos excedentes

foram 6 anos de alelopatia
que eu chamei amor 
os alcalóides que usava
não eram o que me intoxicava
foi o maltrato
o mau manejo
adoeceu meu solo

tanto veneno
disfarçado de afeto
compactou meu solo
exauriu, empobreceu
só que não posso
meramente abandonar este território
que é minha pele e corpo
vivo aqui dentro
me resta reflorestar

para tudo tem jeito
nessa vida
menos para morte 
hoje não quero morrer
não quero amor agrotóxico
não há veneno que corrija erro
de uma trepadeira asfixiando
minhas raízes
podo
corto
quero Sol representando fogo
para transmutar medos e dor

"abro mão da primavera
para que continues me olhando"
disse Neruda
abençoo o inverno
aguardando a primavera
para que ele não siga me olhando

meu reflexo no espelho
meu abebe de Oxum
olha nos meus olhos 
orgulhosa de quem sou

podo correto para ascender
a Lua é minha mãe
as plantas, minhas irmãs
podo para não perder energia
crescendo galhos que
pesarão em meu tronco

corto
cresço, não pereço
renasço
rumo meu barco
não esqueço Caronte
hoje voo com Hermes
crio caminhos no escuro
bailando com o vento
e pirilampos e pássaros

soberania é estar viva
embarco nesse desafio
escolho Agroecologia
e não monogamia.

quinta-feira, 22 de julho de 2021

terrorismo de gênero

03.01.2017
para Lilian

estupro é terrorismo de gênero
feminicídio é terrorismo de gênero
violência doméstica é terrorismo de gênero

e vamos nomear os algozes: os homens
não é o patriarcado
entidade sistema abstrato
é essa ideologia misógina
que se corporifica em cada indivíduo
e sua subjetividade
homens - os que matam
mulheres - as que são mortas

Pimenta Neves matou Sandra
Mizael matou Mércia
Lindemberg matou Eloá
Vinicius matou Louise
Rendrik matou Suênia
Célio matou Lurdinha
Sidnei matou Isamara, Liliane,
Alessandra, Antonia, Abadia,
Ana Luzia, Larissa, Luzia, Caroline

quantas mais?
quantas a menos?
estupro é terrorismo de gênero
feminicídio é terrorismo de gênero
violência doméstica é terrorismo de gênero

não se enganem
nem tentem nos enganar
o que há não é uma guerra entre os sexos
o que há é um massacre contra as mulheres
promovido pelos homens

não há guerra
há possivelmente um genocídio sistemático
e o silêncio ensurdecedor
dos homens que dizem se importar
cobra o preço na nossa carne
cobra o preço ceifando nossa vida
cobra o preço culpando nós pelo que sofremos
mulheres
a classe sexual, o gênero
assassinado
pela violência diária
contra nossos corpos
contra nossos órgãos

é impossível
ser "boa o suficiente"
para não ser morta ou violentada

resta desobedecer com rebeldia
a passividade e a submissão
que tentam impor a nós
resta gritar, escrever, pixar
cantar, sabotar, insurgir, revoltar
resta saber resistir
resta buscar em si uma força absurda
para seguir viva e combativa
sem saber quando e quem
será a próxima agredida
violentada
estuprada
morta

nos matam para que nunca mais
possamos falar
mas as vivas sobreviventes que restam
falarão por todas nós
honraremos os ecos de nossas ancestrais,
irmãs, amigas, namoradas, desconhecidas
todas as vozes injustamente silenciadas
pela morte nas mãos de um homem
que, muitas vezes, tentamos inutilmente amar

o silêncio não vai nos proteger
gritemos.

domingo, 4 de julho de 2021

ctônica

03.07.2021
para Lilian, que me acompanha em tantas noites
escuras ou iridescentes 


sugada até a última gota e me pergunto 
quando crescer
se torna pertencer 

qual é o preço 
do peso de se conectar?
"suicídio não serve: 
não apaga ter sido"

tem quem não peça ajuda
porque não quer se mostrar vulnerável
tenho zero problemas com isso
tenho dificuldade de pedir ajuda
porque já negaram
e falharam
muitas vezes

e aparentemente sou adulta demais 
para precisar ou poder ser cuidada 
no nível do meu desamparo

cresci
com buracos negros na psique 
segundo o único psiquiatra que de fato me ouviu
na vida 
a maturidade precoce forçada em certas áreas
cobrou alto preço em outras 
e cresci arrebentada
performando funcionalidade 

mas a única coisa
que eu realmente queria
é paz de espírito 
é ser deixada em paz 

cresci com vários tipos de violência
e faltas 
nem por isso me embruteci
sempre fui capaz de amar
e muito
até que me destruí 
fui destruída, na verdade
de forma tão total e completa
que tem sido os cacos de uma aniquilação
que escrevem estas linhas
e pouca satisfação obtém delas 

quando penso que minha morte natural 
velhice, colapso
demoraria várias décadas 
sinto desespero 
não quero continuar por aqui tanto assim
eu já mal quero agora 

já ouvi de gente estúpida que eu não deveria 
falar da minha dor e depressão como faço 
publicamente
"para não me expôr"
já fui tão exposta sem querer 
exponho os cortes na minha carne em forma de poesia sim
e já ouvi que salvei a vida de alguém com isso 
bem mais de uma vez 
privacidade para o que me rasga? 
por quê? 
por que deveria eu 
dar o conforto do meu silêncio a sociedade psicofóbica
quando é ela que mata aos meus? 
"você não deveria escrever e falar tanto sobre suicídio"
sua opinião não me importa
é porque eu falo que ainda estou viva
apesar de nem querer
apesar de há mais de 15 anos torcer para não estar mais
é porque eu falo da minha dor
que ela ainda não me levou

enaltecem alguém morrer por uma causa
ou outrém
valor também reside
em viver por isso.

domingo, 13 de junho de 2021

Adstringens

O amor comeu minha autoestima. O amor comeu minha alegria. O amor comeu minha coragem - que vem de cor, coração. O amor comeu minhas virtudes. O amor comeu meu dom de amar.


O amor (e o luto, que é outro de seus nomes) comeu meus cabelos. O amor comeu meu lar. O amor comeu minha resiliência.


O amor comeu minha capacidade de confiar. O amor comeu minha entrega. O amor comeu minha generosidade, e a tornou fonte de vergonha, posto que símbolo de minha generosa estupidez. 


O amor comeu as cartas que enviei ao longo de 6 anos com respostas mais do que tardias e escassas. O amor comeu meu desejo de amar. O amor comeu meu sonho de ter uma família.


O amor comeu minha fé neste estandarte ensanguentado que é a devoção unilateral. O amor me lembrou que eu não sou Jesus Cristo e abnegação sem limites é a estrada para o inferno da autodestruição. O amor esfregou sal em feridas de 20 anos atrás. O amor descosturou retalhos de minh'alma que alinhavei com supremo esmero, desfeitos num rasgo acompanhado de riso de escárnio. 


"It's so easy to laugh
It's so easy to hate
It takes strength to be gentle and kind." 


O amor comeu muito de mim, todavia, a última frase está gravada indelevelmente em meu antebraço. Não posso apagá-la, não posso esquecê-la. Não quero me tornar um resto de pessoa afundada em traumas a ponto de minhas arestas rasgarem as mãos de quem quiser fazer um afago. Como rasgaram as minhas. Como rasgaram as minhas.


E sangram.


O tanino do barbatimão é um cicatrizante excepcional. Quando usado de forma equivocada, no entanto, pode fechar feridas que deveriam ficar abertas e gerar uma infecção. 


Não quero costurar mais nada antes da hora.

Se meu coração tornou-se hemorrágico, que o sangue me lave e uma ablução futura traga sentido às feridas.


Recuperação de áreas degradadas é uma arte. Em nome disso estudo. Em nome disso espero. Em nome disso aguardo. Em nome disso morro.


Para que um dia eu possa voltar a viver  em plenitude e abundância. Para que o afeto alheio não seja 


punhal aos meus olhos


e o meu afeto não seja 

punhal para minha carne.